* Pesquisa realizada como aluna do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal da Bahia, com financiamento da CAPES, pelo Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior, e da Fapesb, pelo Programa de Bolsa de Doutorado.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

VOCABULÁRIO DA SURDEZ PARA INICIANTES – PARTE II

Trago mais alguns conceitos relacionados à linguagem e comunicação dos surdos e entre surdos e ouvintes (veja a parte I aqui). Lembro que são descrições introdutórias e parciais. Caso alguém queira indicação de material para aprofundamento, posso fornecer com prazer.

Língua oral (falada) complementada – esse é um método usado para facilitar a leitura orofacial (LOF) e, portanto, a compreensão da linguagem oral pelo surdo. De modo simplificado, a leitura orofacial, ou leitura labial, se baseia na correspondência entre configuração e movimentação dos lábios e da língua e os fonemas (sons) que compõem as palavras. No entanto, algumas diferenças são imperceptíveis visualmente, por exemplo, a distinção entre os sons de “t” e “d” ou de “f” e “v”, dificultando ou impedindo a compreensão. Na língua oral complementada, sinais específicos para cada fonema são realizados próximo ao rosto sempre que os sons de difícil distinção são pronunciados, de modo que essas dicas visuais se somam à leitura labial. Embora o uso dessa técnica possa trazer benefícios, ela exige uma grande capacidade de concentração do surdo e uma grande habilidade linguística de quem a realiza.

Português sinalizado – diferente da língua de sinais, que possui uma estrutura própria, o português sinalizado é a tradução literal do português oral para sinais, ou seja, mantendo a estrutura do idioma. O português sinalizado é usado principalmente no contexto educativo, como uma forma de transmissão de conteúdos, porém, para o surdo que constrói seu pensamento a partir da língua de sinais, ele pode gerar confusões importantes.

Datilologia – é a utilização do alfabeto manual para soletrar palavras. Na datilologia cada sinal corresponde a uma letra do alfabeto utilizado pelo idioma oral. Ela funciona como uma escrita sinalizada. Algumas pessoas pensam que a língua de sinais se resume à datilologia, mas não é o caso. Seu uso é comum quando se quer expressar uma palavra para a qual não existe um sinal na língua de sinais ou para comunicar um nome próprio. Sua compreensão depende do grau de domínio da escrita pelo surdo. Consta na literatura que o alfabeto manual foi criado por monges espanhóis que viviam em voto de silêncio. Com a datilologia eles podiam se comunicar, sem quebrar seus votos. Posteriormente, este alfabeto foi integrado à educação de surdos e surdo-cegos.

Escrita de Sinais ou Signwriting – sistema de notação da língua de sinais. Esse sistema foi criado pela americana Valerie Sutton, na década de 1970, para ser usado para a transcrição de qualquer língua de sinais e, desde então, vem sendo desenvolvido por diversos pesquisadores. Na escrita de sinais, um conjunto de símbolos visuais é usado para representar os elementos das línguas de sinais que são responsáveis por dar sentido ao que está sendo comunicado: a configuração das mãos, seu posicionamento em relação ao corpo, o movimento que realizam e a expressão facial. A possibilidade de um registro gráfico das línguas de sinais é entendida como uma forma de garantir uma memória permanente do patrimônio cultural da comunidade surda, além de permitir a comunicação à distância. Atualmente, com a maior facilidade do uso e compartilhamento de vídeos, essa necessidade foi parcialmente sanada.


Dúvidas? Sugestões? Críticas? Não hesitem em me dizer, elas ajudam a melhorar o blog.



sexta-feira, 17 de julho de 2015

“DESCULPE, SOU SURDO”

Há um tempo atrás, em um supermercado, me dirigi à um funcionário para tirar uma dúvida sobre um produto. Sem graça, ele sinalizou em LIBRAS: “Desculpe, sou surdo.” Felizmente, meu pouco conhecimento nessa língua me permitiu perguntar o que eu precisava e compreender sua resposta. Eu saí muito orgulhosa por ter tido meu primeiro diálogo em LIBRAS e ele me pareceu muito aliviado e feliz em ter podido me ajudar. Isso é o que muitos surdos relatam sentir quando encontram um ouvinte que usa língua de sinais. 

No entanto, aquela frase não me saiu da cabeça: “Desculpe, sou surdo.” É claro que o funcionário estava sendo gentil e quis mostrar que sentia muito por não poder me responder. Porém, será que essa frase não revela muito sobre a compreensão que, de modo geral, temos sobre a surdez e sobre os surdos? Quando nos desculpamos por algo isso significa, em tese, que reconhecemos que cometemos um erro. Mais do que isso, significa que reconhecemos nossa responsabilidade sobre esse erro e a obrigação de nos retratarmos com aqueles que sentimos que foram prejudicados por ele. Ora, não existe nenhum erro em ser surdo e muito menos a necessidade de se desculpar por isso. Nesse sentido, se desculpar por ser surdo seria como eu me desculpar por ser mulher, me desculpar por ter nascido no Brasil ou me desculpar por ter um metro setenta.

Por trás dessa frase está a compreensão da surdez como um desvio da norma, como uma condição que não é compatível com o que seria um ser humano ideal. Quase todos nós já nos sentimos em algum momento oprimidos por esse tal de ideal, que, por definição, é sempre inalcançável. Sobre esse ideal, cada sociedade, em cada contexto histórico particular, constrói o seu conceito de NORMAL. Ainda que seja extremamente variável e culturalmente construído, o conceito de normal é apresentado como se fosse algo natural, inevitável, como a única forma possível e desejável de existir. A imposição de atender a esse ideal é tão presente e forte que nos faz sentir culpados cada vez que nos percebemos desviando dele: “Desculpe, eu não tenho carro.” “Desculpe, eu não uso manequim 36.” “Desculpe, eu sou negro.” “Desculpe, eu não gosto de futebol.” “Desculpe, eu não quero ter filhos.” “Desculpe, eu sou homossexual.” “Desculpe, eu não bebo.”

Porém, quando desnaturalizamos o conceito de normal, ou seja, quando entendemos que ele se molda a partir de convenções sociais, entendemos também que somos capazes de intervir sobre ele, de mudá-lo, ou até, quem sabe, de decidir que ele já não é mais necessário. Então, o que eu gostaria de poder dizer àquele funcionário surdo do mercado é: “Desculpe, eu faço parte dessa sociedade e, por isso, me sinto responsável por ela ainda ser uma sociedade que faz muitas pessoas se sentirem na obrigação de pedir desculpa pelo simples fato de serem quem são.”

Foto de arquivo pessoal.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

SEREMOS TODOS SURDOS?

Não, não acho que um dia seremos todos surdos, porém, com o aumento da expectativa de vida e de outros fatores de risco, tais como exposição ao barulho e a substâncias ototóxicas, todos nós estamos mais sujeitos a ter uma perda auditiva progressiva. A perda auditiva relacionada ao envelhecimento é chamada presbiacusia.  Além de fatores ligados ao estilo de vida, como tabagismo, uso de medicações e consumo de álcool, os fatores genéticos também são muito importantes.

Diferente de uma perda súbita, ou de uma perda congênita, ou seja, quando a pessoa já nasce surda, a perda progressiva é mais dificilmente percebida. Sem se dar conta, a pessoa vai desenvolvendo alguns mecanismos compensatórios, como a leitura orofacial, por exemplo. Mesmo assim, é comum que a pessoa comece a ter dificuldades em acompanhar uma conversa entre várias pessoas ou em um ambiente com mais ruído e que as situações de comunicação se tornem muito fatigantes, pelo nível de concentração exigido. Isso pode resultar em um maior isolamento, com a recusa em participar de situações sociais e uma maior impaciência. Muitas vezes, a família ou as pessoas próximas entendem isso como um sentimento de depressão ou como “coisa da idade” e o diagnóstico demora pra ser feito ou nem chega a ser feito. Outras vezes, a pessoa esconde sua dificuldade em ouvir, tornando a adaptação de todos ainda mais difícil.

Nos casos de presbiacusia, o uso de aparelhos auditivos pode ajudar, no entanto, muitas vezes não se tem o cuidado necessário com a adaptação das próteses. Esse é um processo delicado e contínuo, que deve acompanhar as variações na perda e as demandas e estilo de vida de cada usuário. O descuido com a adaptação, por desinformação ou por dificuldade em dar continuidade ao acompanhamento, faz com que muita gente desista do uso dos aparelhos por não perceber um ganho concreto.

No entanto, tão ou mais importante do que o uso dos aparelhos é a atitude da pessoa com a perda e das pessoas próximas. Algumas coisas simples podem facilitar a comunicação, tais como: chamar atenção da pessoa, de preferência com um toque ou gesto, quando for se dirigir a ela; procurar falar de forma mais clara e lenta, olhando diretamente pra pessoa e sem gritar; certificar-se de que a pessoas entendeu; quando possível, utilizar meios visuais para reforçar mensagens importantes; privilegiar situações e locais com menos barulho pra facilitar a interação, e; principalmente, não desistir de se comunicar.

Embora exista uma grande diferença entre a presbiacusia e a surdez, todas essas orientações também são válidas quando estamos conversando com um surdo que faz leitura orofacial. Pensando bem, por que esperar que nós ou alguém próximo tenha uma perda auditiva pra desenvolvermos uma postura que facilite o contato entre surdos e ouvintes? Mais uma vez fica claro que, quando temos uma atitude inclusiva, somos todos nós que saímos ganhando. 

Foto de arquivo pessoal