* Pesquisa realizada como aluna do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal da Bahia, com financiamento da CAPES, pelo Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior, e da Fapesb, pelo Programa de Bolsa de Doutorado.

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quarta-feira, 21 de setembro de 2016

DEFICIÊNCIA: O QUE HÁ DE COMUM EM NÓS



Dados internacionais dão conta que cerca de 10% da população mundial vive com algum tipo de deficiência. Desses, 80% estão em países em desenvolvimento. O dados do Censo Demográfico do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) indicam que, em 2000, 14,5% da população brasileira declarou possuir uma ou mais deficiência. Em 2010, esse número subiu para 23,9% da população. Será possível que, em apenas 10 anos, o número de pessoas deficientes no país tenha praticamente dobrado? Para compreender melhor o que esses dados significam, é preciso entender a forma como foram coletados. 

De fato, esses números refletem mais uma mudança conceitual e metodológica, do que um aumento real de pessoas deficientes. Assistimos, nas últimas décadas, a uma reelaboração do conceito de deficiência, que se desloca de categorias estritamente médicas, para uma compreensão que inclui a influência de fatores sociais e ambientais sobre as limitações experimentadas pela pessoa deficiente. A forma de investigação censitária sobre a deficiência passa por modificações constantes, buscando se adequar à evolução deste conceito. Por esse motivo, o próprio documento do IBGE alerta para a impossibilidade de se realizar comparações diretas entre os levantamentos realizados em diferentes censos. 

No Censo Demográfico de 2010, foi privilegiada a percepção da população sobre sua dificuldade em enxergar, ouvir e locomover-se, como forma de identificar a deficiência visual, auditiva e motora. As perguntas foram formuladas a partir de estudos conjuntos entre o IBGE e demais países do Mercosul, com base em questões propostas pelo Grupo de Washington sobre Estatísticas das Pessoas com Deficiência (Washington Group on Disability Statistics - GW). Essa parceria teve como objetivo principal criar um banco de dados uniformizado, que permita a comparação entre as estatísticas de todos os países do grupo. 

A partir da formulação básica: “Tem dificuldade permanente de...?”, os informantes foram questionados sobre as limitações e dificuldades percebidas no seu cotidiano. Podemos supor que essa metodologia tenha favorecido a identificação de deficientes antes não detectados pelo censo, contribuindo para o aumento expressivo nessa porcentagem, entre 2000 e 2010. 

Outro fator que influencia bastante no número de pessoas que declaram ter uma ou mais deficiências é o envelhecimento da população brasileira. A porcentagem de pessoas deficientes aumenta de forma significativa com o aumento da faixa etária, sendo de 7,5% para pessoas entre 0 e 14 anos; 24,9% para pessoas entre 15 e 64 anos; e 67,7% para pessoas com 65 anos ou mais. Com o aumento da longevidade e do número de pessoas com mais de 65 anos, a tendência é que haja também um aumento no número de pessoas com deficiência. Isso também pode explicar a maior porcentagem de mulheres deficientes (26,5%) do que de homens (21,2%), uma vez que as mulheres têm uma expectativa de vida maior. 

Há algo muito importante que podemos extrair dos dados do Censo 2010. Penso que eles nos mostram que a deficiência não é algo distante, ocasional, ou mesmo trágico, que diz respeito a uma pequena parcela da população, mas sim uma condição que faz parte da vida, que nos toca ou tocará a todos em algum momento da nossa existência, de diferentes maneiras. Essa constatação deveria servir para diminuir a distância entre deficientes e não-deficientes, ressaltando o que há de comum em nós. 

Fonte: IBGE (2010). Censo demográfico 2010 – Características gerais da população, religião e pessoas com deficiência.

sábado, 28 de maio de 2016

QUAL A MEDIDA DA SURDEZ?

Embora esse texto comece com uma pergunta, não tem a pretensão de respondê-la, apenas de convidar à reflexão. Tramita no congresso um projeto que propõe a inclusão de surdos unilaterais na categoria deficiente. O Projeto de Lei 1361/15, do deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP), foi aprovado na câmara em dezembro de 2015 e encaminhado ao Senado, após aprovada a redação final, no dia 17 de maio de 2016, onde aguarda votação. No momento, o texto está submetido à consulta pública e você pode lê-lo na integra e opinar aqui.

Se aprovado, as pessoas com surdez unilateral de moderada a profunda passam a ter os mesmos direitos que os outros surdos, como, por exemplo, tornam-se elegíveis para preencher a cota de vagas para deficientes, tanto no âmbito público, quanto privado. Opiniões favoráveis e contrárias têm sido expressas e discutidas. A controvérsia parece girar em torno da garantia de equidade. Aqueles que são contrários ao projeto alegam que os surdos unilaterais não teriam dificuldades em participar de forma plena e efetiva na sociedade. Além disso, temem que os surdos bilaterais sejam preteridos nas seleções de emprego, uma vez que pouca ou nenhuma adaptação seria necessária, por parte das empresas, para incluir um funcionário surdo unilateral. Aqueles que são a favor, reconhecem as dificuldades sofridas por surdos unilaterais, além de citarem o fato de muitos serem reprovados em exames admissionais, justamente por conta da perda auditiva. Por esse motivo, afirmam, seria justo que os surdos unilaterais também fossem contemplados pelas políticas inclusivas.

Essa discussão é extremamente interessante, não apenas porque a decisão pode afetar a vida de muitas pessoas, mas porque nos coloca de frente com o dilema da definição de surdez. Em consonância com as definições internacionais, a legislação até então em vigor (Decreto 5.296/04) define a surdez como perda bilateral, parcial ou total, de 41 decibéis (dB) ou mais, nas frequências de 500 Hz, 1.000 Hz, 2.000 Hz e 3.000 Hz. Essa seria uma definição sustentada exclusivamente em parâmetros orgânicos, definidos dentro do escopo da medicina.

Por outro lado, teóricos e membros da comunidade surda reivindicam que a surdez seja compreendida não como correlato direto da perda auditiva, mas como uma identidade linguística e cultural. Nesse sentido, os Surdos, assim escrito com letra maiúscula para diferenciar da definição médica, seriam identificados não pelos decibéis de menos, mas pelo uso de uma língua própria, por compartilharem de uma cultura e história próprias e, principalmente, pela experiência comum de exclusão enquanto minoria vivendo em um mundo pensado por e para ouvintes. 

Segundo essa ideia, a Surdez seria uma forma particular de ser e de compreender o mundo. Essa compreensão não localiza as dificuldades vividas pelos surdos na perda auditiva em si, mas em um contexto social não adaptado. Isso significa que, quanto mais inclusivo o meio, menores as barreiras que impedem os surdos de participar plenamente da sociedade. Essa visão é representada pela definição de deficiência estabelecida na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, que diz: “Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.” 
  
Porém, assim como para outros tipos de deficiência, têm-se encontrado muita dificuldade em traduzir essa compreensão em parâmetros objetivos, que sirvam de critério de inclusão em políticas afirmativas e para a concessão de benefícios. Como medir as dificuldades enfrentadas por cada pessoa na sua busca pela participação na sociedade? Como avaliar os danos subjetivos provocados por viver com uma diferença? Que outros fatores e espaços de pertencimento contribuem para a construção de uma auto-imagem positiva? Como materializar na definição de surdez a importância do meio no estabelecimento de barreiras? Esse é um grande desafio teórico e ético, que deve ser tratado com profundidade e respeito. De nada adiante dividir os surdos e criar um clima de disputa entre posições. Trata-se de encontrar meios para a construção de uma sociedade mais justa, o que se faz melhor quando feito com cuidado e com afeto.    



sábado, 30 de janeiro de 2016

1001 JEITOS DE SER SURDO

Discute-se bastante sobre as diferenças entre surdos e ouvintes. Isso é importante, sem dúvida, para que as necessidades de cada um desses grupos sejam atendidas e seus direitos, respeitados. Pois bem, é preciso também falarmos sobre as diferenças entre surdos e surdos, ou seja, chamar atenção para a enorme variedade de pessoas diferentes que se agrupam sob o termo surdo. Cada vez mais, dizer que alguém é surdo nos diz menos sobre quem é essa pessoa. 

Pra começo de conversa, há surdos pré-linguais e pós-linguais, como já trouxemos aqui; há surdos uni-laterais e bilaterais; há os que tenham surdez leve, moderada, severa ou profunda; há surdos que falam, falam muito, sejam implantados ou não; há surdos sinalizadores, ou seja, usuários de línguas de sinais; há surdos bilíngues, ou mesmo poliglotas; há surdos que leem e escrevem, há surdos que não; há surdos que são os únicos em suas famílias e há famílias em que a surdez é um traço de pertencimento; há surdos temporários e há surdos permanentes; há surdos que também são cegos... e há, ainda, todas as combinações possíveis entre esses e outros aspectos. Cada uma dessas pessoas tem características auditivas e de linguagem próprias, que vão marcar sua relação com o mundo. Mas isso não é tudo. 

Além desses, inúmeros outros aspectos identitários se agregam para definir quem somos, ou, pelo menos, quem estamos. É certo que ser ou estar surdo, de qualquer forma que seja, tem um efeito sobre a vida das pessoas e daqueles que as rodeiam. Não se pode menosprezar a importância e interferência que a experiência da surdez, em um contexto majoritariamente ouvinte, exerce sobre o cotidiano de cada surdo. Porém,  ninguém e apenas surdo. Todos são também mulheres ou homens ou têm outra identidade de gênero; alguns são crianças, outros estão velhos; todos têm ou terão uma orientação sexual, tenha ela uma definição ou não; todos têm uma nacionalidade e alguns têm mesmo mais de uma; muitos têm uma religião, outros têm suas crenças, mesmo sem se identificar a um grupo religioso específico; muitos são Bahia, outros são Vitória; são estudantes, trabalhadores, desempregados, gostam de dançar, sabem nadar, adoram gatos, têm medo de avião... 

Foi-se o tempo em que um diagnóstico de surdez definia um futuro único, predeterminado e limitado. Porém, a bem vinda liberdade que isso possibilita traz também um grande desafio, que é equalizar, tanto nas políticas públicas quantos em nossas práticas cotidianas, a aparente contradição entre o reconhecimento da diversidade e a certeza de que todos somos iguais, ainda que diferentes. 


segunda-feira, 31 de agosto de 2015

SURDO, SIM. MUDO, NÃO!

Há algum tempo que o termo surdo-mudo já não figura mais no vocabulário dos surdos e profissionais que trabalham com a surdez, nos nomes das instituições ou em documentos oficiais. Mesmo assim, ele ainda aparece na linguagem corrente e é empregado por muitas pessoas pra se referir aos surdos. Se você é uma dessas pessoas, veja aqui três razões pelas quais não devemos chamar os surdos de mudos.

A primeira delas se sustenta no aspecto orgânico, ou, anatomo-fisiológico. O surdo, na maioria dos casos, não tem nenhum problema no aparelho fonoarticulatório ou a nível cerebral que o impeça de falar.  O que acontece é que a fala se aprende, salvo por meio de tratamento específico, na medida em que vamos escutando as pessoas falando ao nosso redor. Como, pela falta da escuta, o surdo não aprende a falar de forma espontânea, por muito tempo acreditou-se que eles fossem também mudos, daí a designação surdo-mudo que persiste até hoje em muitos idiomas. Na verdade, mesmo em algumas línguas de sinais, o sinal de surdo ainda remonta a esse antigo termo. É o caso da LIBRAS, por exemplo, em que o sinal de surdo consiste em colocar o dedo indicador na orelha e depois na boca, fazendo referência tanto ao não ouvir quanto ao não falar.

Fonte: arquivo pessoal


A segunda razão se liga à grande variedade de condições que são agrupadas sobre o termo surdo. Muitos surdos perdem a audição após a aquisição da linguagem oral, são os surdos pós-linguais. Para eles, de modo geral, a língua oral continua sendo sua principal forma de expressão. Além disso, muitos surdos, mesmo pré-linguais, aprendem a falar por meio de tratamento fonoaudiológico e com a ajuda de aparelhos auditivos e implantes cocleares. Portanto, os surdos que falam são cada vez mais numerosos.

A última razão que apresento, embora essas três não sejam as únicas, se relaciona ao sentido simbólico da mudez, ou seja, à relação entre a designação mudo e a ideia de não expressão. Também nesse sentido, os surdos não são mudos. Os surdos se expressam e o fazem de várias maneiras, seja por meio da língua sinais, seja falando, seja pela escrita, pela arte, enfim, pelas diversas linguagens das quais dispomos. Há ainda surdos que, mesmo podendo, decidem não falar para manifestar seu desacordo com a oralização, mas mesmo isso não faz deles mudos, já que a própria recusa em falar, nesse caso, é uma expressão em si mesma.

Embora mudar os hábitos de linguagem seja difícil, abandonar essa antiga designação, surdo-mudo, ou ainda termos como mudo ou mudinho, demonstra sensibilidade e respeito às reivindicações dos surdos e atenção às transformações em curso na nossa sociedade.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

EM DUPLO RISCO: MULHER E DEFICIENTE

Há exatos 09 anos (07/08/2006) foi sancionada a Lei Maria da Penha. Embora as ações e discussões que derivaram dela não tenham acabado com a violência doméstica contra a mulher no país, elas contribuíram para encorajar a denúncia. Em 2014, a Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) recebeu, em média, mais de 1300 denúncias de violência contra a mulher por dia. Em relação ao ano anterior, houve um aumento de 50% nas denúncias de cárcere privado e de 20% nas denúncias de violência sexual (estupro, assédio e exploração sexual). As denúncias de violência física chegaram a 27.369, correspondendo a 51,68% do total. Nunca é demais lembrar que o número de denúncias está longe de corresponder à totalidade de ocorrências e que a violência física representa apenas um dos tipos de violência cometida contra a mulher.

Fonte: arquivo pessoal
Quando nos voltamos para o universo das mulheres com deficiência, a situação é ainda mais grave. Em Portugal, 50% das mulheres deficientes que participaram de uma pesquisa relataram ter sofrido violência de gênero. No Canadá, em pesquisa realizada em 1989, 40% das mulheres com deficiência que responderam aos questionários afirmaram ter sido vítimas de abuso e 12%, vítimas de estupro. Menos da metade delas registrou queixa. Embora outras pesquisas, tanto nacionais quanto internacionais, ratifiquem essa porcentagem, a necessidade de estudos mais aprofundados é evidente.

Além das formas de violência de gênero perpetradas contra as mulheres em geral, a mulher com deficiência está sujeita também às formas de violência cometidas contra os deficientes, tais como, a imposição de tratamentos médicos intrusivos e não consentidos, por vezes com consequências irreversíveis, ou, pelo contrário, a não garantia de tratamentos e cuidados necessários. A mulher deficiente fica colocada no entrecruzamento perverso de dois preconceitos milenares, encontrando-se numa posição de duplo risco.

Algumas hipóteses tentam explicar essa triste prevalência: as mulheres com deficiência, em geral, são menos escolarizadas; vivem uma situação de maior dependência econômica; têm uma circulação mais restrita nos meios sociais e, portanto, mais dificuldade em encontrar suporte; têm menos condição de acessar os serviços de apoio existentes e, em alguns casos, menos credibilidade diante das autoridades que deveriam protegê-las. Com isso, os agressores, quase sempre pessoas próximas, se encontram em uma posição de maior poder e têm mais certeza de permanecerem impunes por seus crimes. Essas hipóteses, no entanto, não explicam a violência, elas apenas descrevem a situação de maior vulnerabilidade em que se encontra a mulher deficiente. Entender porque as pessoas se aproveitam dessa condição pra praticar atos de violência é bem mais complexo.

A violência é um sintoma da desumanização do outro: aceito como ser humano aquele que reconheço como igual ou como ideal, porque vejo nele as características que admiro em mim ou que desejo ter. Todos os outros são menos humanos ou mesmo não humanos, são objetos, dos quais posso dispor de acordo com meus desejos, humores e medos. Nestes, apenas vejo as partes de mim que não aceito e por isso não os suporto. Parte da violência é fruto dessa objetificação: seja como ato de exercício perverso de poder daquele que se entende como ser humano verso aquele a quem considera objeto, seja como ato de reação daquele que se viu reiteradamente colocado neste lugar.

* Os links inseridos ao longo do texto levam para as fontes de onde foram extraídas as informações usadas.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

“DESCULPE, SOU SURDO”

Há um tempo atrás, em um supermercado, me dirigi à um funcionário para tirar uma dúvida sobre um produto. Sem graça, ele sinalizou em LIBRAS: “Desculpe, sou surdo.” Felizmente, meu pouco conhecimento nessa língua me permitiu perguntar o que eu precisava e compreender sua resposta. Eu saí muito orgulhosa por ter tido meu primeiro diálogo em LIBRAS e ele me pareceu muito aliviado e feliz em ter podido me ajudar. Isso é o que muitos surdos relatam sentir quando encontram um ouvinte que usa língua de sinais. 

No entanto, aquela frase não me saiu da cabeça: “Desculpe, sou surdo.” É claro que o funcionário estava sendo gentil e quis mostrar que sentia muito por não poder me responder. Porém, será que essa frase não revela muito sobre a compreensão que, de modo geral, temos sobre a surdez e sobre os surdos? Quando nos desculpamos por algo isso significa, em tese, que reconhecemos que cometemos um erro. Mais do que isso, significa que reconhecemos nossa responsabilidade sobre esse erro e a obrigação de nos retratarmos com aqueles que sentimos que foram prejudicados por ele. Ora, não existe nenhum erro em ser surdo e muito menos a necessidade de se desculpar por isso. Nesse sentido, se desculpar por ser surdo seria como eu me desculpar por ser mulher, me desculpar por ter nascido no Brasil ou me desculpar por ter um metro setenta.

Por trás dessa frase está a compreensão da surdez como um desvio da norma, como uma condição que não é compatível com o que seria um ser humano ideal. Quase todos nós já nos sentimos em algum momento oprimidos por esse tal de ideal, que, por definição, é sempre inalcançável. Sobre esse ideal, cada sociedade, em cada contexto histórico particular, constrói o seu conceito de NORMAL. Ainda que seja extremamente variável e culturalmente construído, o conceito de normal é apresentado como se fosse algo natural, inevitável, como a única forma possível e desejável de existir. A imposição de atender a esse ideal é tão presente e forte que nos faz sentir culpados cada vez que nos percebemos desviando dele: “Desculpe, eu não tenho carro.” “Desculpe, eu não uso manequim 36.” “Desculpe, eu sou negro.” “Desculpe, eu não gosto de futebol.” “Desculpe, eu não quero ter filhos.” “Desculpe, eu sou homossexual.” “Desculpe, eu não bebo.”

Porém, quando desnaturalizamos o conceito de normal, ou seja, quando entendemos que ele se molda a partir de convenções sociais, entendemos também que somos capazes de intervir sobre ele, de mudá-lo, ou até, quem sabe, de decidir que ele já não é mais necessário. Então, o que eu gostaria de poder dizer àquele funcionário surdo do mercado é: “Desculpe, eu faço parte dessa sociedade e, por isso, me sinto responsável por ela ainda ser uma sociedade que faz muitas pessoas se sentirem na obrigação de pedir desculpa pelo simples fato de serem quem são.”

Foto de arquivo pessoal.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

EM TERRA DE CEGO...

“Em terra de cego, quem tem um olho é rei.” Esse é um famoso provérbio popular, que significa que, mesmo quando se tem pouco, em um contexto onde todos os demais têm ainda menos, você está em vantagem. É claro que o provérbio se baseia em uma metáfora e não deve ser tomado ao pé da letra, mas será que essa metáfora se sustentaria se pudéssemos realmente viver a experiência de ser o único a enxergar em um mundo de cegos?

H. G. Wells, no seu conto de 1904 The country of the blinds, traduzido em português como Em Terra de Cego, retrata exatamente esta situação. O conto se passa em um lugar imaginário que teria sido isolado do resto do mundo após a erupção de um vulcão e no qual, por uma condição genética predominante, toda a população acabou por ser composta unicamente por cegos. Após várias gerações de isolamento, um homem chega por acaso a esse lugar e então as situações mais inesperadas acontecem. Paro por aqui pra não entregar o final da história, cuja leitura recomendo e que pode ser facilmente encontrada na internet.

Para mim, esse conto mostra o quanto é difícil pensar o mundo a partir de outros parâmetros, o quanto assumimos que o nosso jeito de pensar, de ver, de escutar é o melhor, se não o único jeito possível. Nem todos podemos contar com a capacidade de imaginação de um escritor como H. G. Wells. Para a maioria de nós, pensar o mundo a partir de um outro ponto de vista é um exercício extremamente difícil.

Porém, algumas vezes nos vemos em situações que nos ajudam a compreender um pouco do que é viver em um mundo que não foi pensado pra nós. Pense no quanto podemos nos sentir dependentes quando precisamos imobilizar um braço ou uma perna. Pense no quanto é difícil resolver problemas simples quando estamos em um país onde não conhecemos o idioma. Pense no quanto podemos nos sentir incapazes quando nos deparamos com uma nova tecnologia e que todos, menos nós, parecem usar com facilidade. É claro que isso não é o mesmo que viver toda a vida tendo que lidar com dificuldades semelhantes a essas, mas esses breves momentos podem nos sensibilizar a todos para a existência de diferentes jeitos de ser.

Mais do que isso, o que essas experiências e o conto de H. G. Wells deveriam nos ajudar a compreender é que a deficiência, a limitação, a incapacidade são determinadas pelo contexto. É o meio que é incapacidade, não a surdez, a cegueira, a paralisia. É a forma de ensinar inadequada que limita a aprendizagem do surdo. É a falta de rampas que restringe o deslocamento do cadeirante. É o pensamento intolerante que exclui o diferente e não a sua diferença. Quando compreendemos isso, ampliamos nosso jeito de ver e pensar o mundo e passamos não mais a desejar ser aquele que tem um olho em terra de cego, mas a desejar e a nos empenhar na construção de uma terra que seja de todos. Em uma terra assim, um rei seria ainda necessário?





Herbert George Wells, em 1943.
Fonte: Wikipédia

quarta-feira, 29 de abril de 2015

TODOS SOMOS PRECONCEITUOSOS

Por mais que não seja afeita às generalizações, admitir a onipresença do preconceito é necessário para não permitir que ele guie nossas ações e se traduza em discriminação.

Todos somos preconceituosos porque essa é a forma mais econômica de pensar. Ao nos relacionarmos com o mundo e com os outros o fazemos a partir de nossas experiências. Assim, diante de alguém ou de alguma situação, infinitas associações, conscientes ou não, interferem na forma como avaliamos o contexto e nos posicionamos diante dele. Em nome da praticidade e da urgência, essas associações operam de forma generalizada, ou seja, não levam em conta, em um primeiro momento, as características específicas da situação, mas tratam de enquadrá-la em uma categoria pré-estabelecida, forjada lentamente por nossos preconceitos.

Todos somos preconceituosos porque nascemos, crescemos e vivemos em sociedade e não estamos imunes aos mecanismos de classificação, valorização e reforçamento social que a constitui. Diariamente, as práticas sociais e culturais reeditam antigos preconceitos, enquanto se esforçam pra manter as coisas como elas são. Nas notícias tendenciosas, nas propagandas oportunistas, nas piadas aparentemente inocentes, nas imagens estereotipadas, nas expressões cristalizadas, de forma mais ou menos oculta, antigas ideias e ideais são transmitidos e naturalizados. Tudo isso se atualiza no preconceito que orienta o trato cotidiano entre as pessoas.

Todos somos preconceituosos porque o contato com o outro nos confronta com nosso próprio reflexo e com complexos processos de identificações. O estranho nos fascina, porque nos assusta terrivelmente. Encontrar rapidamente um rótulo com o qual definir o outro, nos dá um conforto, porque sustenta a fronteira entre o eu e o não-eu, porque nos protege da fatigante  e, por vezes, excessivamente desorganizante tarefa de questionar a nós mesmos e às nossas ações. O preconceito, portanto, funciona como uma defesa, que empregamos porque o conforto da repetição, do mais ou menos, prevalece sobre a intuição das dificuldades que podemos enfrentar na construção do ótimo.    


Admitir o preconceito e conhecer seus intrincados mecanismos é o que pode fazer minguar sua expressão na forma de discriminação. Que a primeira impressão que nos venha seja moldada por nossos preconceitos, isso me parece, por ora, inevitável. Porém, é preciso cavar um espaço entre esta impressão e o gesto, pra aí instaurar a vigilância constante contra a discriminação. Isso requer de nós a abertura à novidade, ao desconhecido, ao inusitado. Isso nos demanda encarar o reflexo não tão belo que nos mostra o espelho das nossas escolhas. Quem topa?