* Pesquisa realizada como aluna do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal da Bahia, com financiamento da CAPES, pelo Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior, e da Fapesb, pelo Programa de Bolsa de Doutorado.

sábado, 30 de janeiro de 2016

1001 JEITOS DE SER SURDO

Discute-se bastante sobre as diferenças entre surdos e ouvintes. Isso é importante, sem dúvida, para que as necessidades de cada um desses grupos sejam atendidas e seus direitos, respeitados. Pois bem, é preciso também falarmos sobre as diferenças entre surdos e surdos, ou seja, chamar atenção para a enorme variedade de pessoas diferentes que se agrupam sob o termo surdo. Cada vez mais, dizer que alguém é surdo nos diz menos sobre quem é essa pessoa. 

Pra começo de conversa, há surdos pré-linguais e pós-linguais, como já trouxemos aqui; há surdos uni-laterais e bilaterais; há os que tenham surdez leve, moderada, severa ou profunda; há surdos que falam, falam muito, sejam implantados ou não; há surdos sinalizadores, ou seja, usuários de línguas de sinais; há surdos bilíngues, ou mesmo poliglotas; há surdos que leem e escrevem, há surdos que não; há surdos que são os únicos em suas famílias e há famílias em que a surdez é um traço de pertencimento; há surdos temporários e há surdos permanentes; há surdos que também são cegos... e há, ainda, todas as combinações possíveis entre esses e outros aspectos. Cada uma dessas pessoas tem características auditivas e de linguagem próprias, que vão marcar sua relação com o mundo. Mas isso não é tudo. 

Além desses, inúmeros outros aspectos identitários se agregam para definir quem somos, ou, pelo menos, quem estamos. É certo que ser ou estar surdo, de qualquer forma que seja, tem um efeito sobre a vida das pessoas e daqueles que as rodeiam. Não se pode menosprezar a importância e interferência que a experiência da surdez, em um contexto majoritariamente ouvinte, exerce sobre o cotidiano de cada surdo. Porém,  ninguém e apenas surdo. Todos são também mulheres ou homens ou têm outra identidade de gênero; alguns são crianças, outros estão velhos; todos têm ou terão uma orientação sexual, tenha ela uma definição ou não; todos têm uma nacionalidade e alguns têm mesmo mais de uma; muitos têm uma religião, outros têm suas crenças, mesmo sem se identificar a um grupo religioso específico; muitos são Bahia, outros são Vitória; são estudantes, trabalhadores, desempregados, gostam de dançar, sabem nadar, adoram gatos, têm medo de avião... 

Foi-se o tempo em que um diagnóstico de surdez definia um futuro único, predeterminado e limitado. Porém, a bem vinda liberdade que isso possibilita traz também um grande desafio, que é equalizar, tanto nas políticas públicas quantos em nossas práticas cotidianas, a aparente contradição entre o reconhecimento da diversidade e a certeza de que todos somos iguais, ainda que diferentes. 


sexta-feira, 27 de novembro de 2015

LÍNGUA DE SINAIS KA’APOR BRASILEIRA

O Museu Emílio Goeldi é um pedaço da floresta no centro de Belém. Além de plantas e bichos da Amazônia, alguns correndo soltos pelo mato, o museu conta com um espaço de exposições, o Pavilhão de Exposições Domingos Soares Ferreira Penna, também chamado de A Rocinha. Em visita ao museu pude apreciar a exposição Festa do Cauim, que retrata a cultura e tradições do povo Ka’apor, através dessa festa em que são celebrados diversos rituais de passagem, vividos por todos os membros da tribo. Ka’apor, em tupi, significa Povo da Mata (Ka’a, mata e poro, povo). Esse povo é também chamado de Urubu-Ka’apor. Estão presentes no sul do estado do Maranhão, tendo migrado para essa região, vindos do Pará, no fim do século XIX. Atualmente, sua população soma cerca de 2.300 índios. 

Na exposição, além de conhecer algumas lendas, vestimentas, objetos e detalhes dos rituais que acontecem durante a Festa do Cauim, aprendi que os índios Ka’apor têm uma língua de sinais própria. Como a LIBRAS, essa língua se diferencia de mímicas e gestos, possuindo uma estrutura bem definida e sendo usada para a comunicação entre e com os surdos da aldeia. A proporção de surdos entre os Ka’apor já foi bastante elevada, quando comparada com os dados nacionais, chegando a um surdo para cada 75 ouvintes, no final da década de 1960. Por isso, muitos índios não surdos conhecem e utilizam a língua de sinais ka’apor no seu cotidiano. 

Alguns fatores podem explicar a alta prevalência de surdos em uma população, tais como aspectos genéticos e a prática de endogamia (casamento entre parentes), como é o caso da ilha Marta’s Vineyard, na costa nordeste dos Estados Unidos, onde a incidência de surdez chegava à 25%, em algumas regiões. Neste caso, casamentos consanguíneos, entre os primeiros colonos, ainda no século XVII, potencializaram a transmissão de um gene recessivo transmissor de surdez*. Entre os Ka’apor é possível que a alta ncidência de varíola aviária tenha contribuído para o grande número de surdos, porém, não há uma pesquisa consistente sobre isso.

A Língua de Sinais Ka’apor Brasileira foi registrada pela primeira vez na década de 1950, no entanto, não se sabe desde quando ela é praticada por esse povo. O que se sabe é que, entre os Ka’apor, os surdos são integrados à vida cotidiana da tribo e não sofrem discriminação. Esse exemplo dos Ka’apor nos mostra de forma contundente que quando a surdez não é vista como uma deficiência, mas como uma característica, surdos e ouvintes podem conviver em harmonia.

Arquivo pessoal


* Fonte: Vendo vozes: uma viagem ao mundo dos surdos, de Oliver Sacks.

Veja um vídeo de uma história contada em Língua de Sinais Ka'apor Brasileira,
gravado pelo pesquisador Gustavo Godoy, a quem agradeço por esclarecimentos prestados.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

SURDEZ E CUIDADOS COM A SAÚDE

Ainda que a surdez possa estar associada a outras condições médicas, como em algumas síndromes, ou infecções virais, por exemplo, ela não traz com ela nenhuma doença, fragilidade ou problema de saúde, de qualquer natureza. No entanto, você sabia que crianças e adultos surdos, especialmente surdos pré-linguais, podem estar mais expostos a acidentes e problemas de saúde, por conta dos entraves da comunicação? 

Hauser e colaboradores, em artigo escrito em 2010, relatam estudos que mostram que as crianças surdas estão mais expostas a acidentes e machucados. Segundo os autores, isso deve estar associado ao fato de os filhos geralmente serem alertados pelos pais sobre perigos e ensinados sobre como e de que se proteger de modo oral. A informação sobre lugares e situações perigosas circula entre as crianças e pessoas próximas eminentemente de modo oral, seja diretamente, seja ouvindo conversas de terceiros.

Direito sobre imagem: Jeitos de Ser e Conviver


Surdos também apresentaram dificuldade em se familiarizar com a história médica da família, conhecimento importante para os cuidados com a própria saúde. Saber daquela tia que teve câncer de mama, ou do avô que faleceu de problema cardíaco, ou daquela prima que tem diabetes, todas essas são informações que nos ajudam a conhecer nossas heranças genéticas e a nos prevenir. Acontece que essas histórias são comentadas, em geral, informalmente, em conversas familiares. 

Os autores citam também vários estudos que demonstram um elevado desconhecimento das pessoas surdas com relação a sintomas de doenças e cuidados com a saúde, quando comparados com adultos ouvintes. Eles supõem que grande parte deste conhecimento é adquirida de modo incidental e informal, nas conversas cotidianas. Cabe lembrar que cerca de 95% das crianças surdas nasce em famílias de ouvintes, muitas delas com pouco ou nenhum contato prévio com surdos. Estas famílias costumam organizar suas trocas cotidianas essencialmente de modo oral.

Direito sobre imagem: Jeitos de Ser e Conviver


Isso significa que toda uma série de conceitos, comportamentos, posturas, cuidados, que são transmitidos entre as pessoas de modo espontâneo, ou pelo que chamamos de aprendizagem incidental, precisa ser ensinada aos surdos de forma sistemática. Essa é uma compreensão difícil para os pais, já que a maioria deles viveu uma experiência amplamente sustentada nas trocas orais. No entanto, é importante que a família se ocupe disso de forma consciente. E se você é surdo, fique atento, pergunte, procure informações e se intere sobre a história médica da sua família. 

Do mesmo modo, os profissionais de saúde devem garantir que toda informação e orientação seja compreendida integralmente pelo surdo nas situações de atendimentos clínicos, de realização de exames e de prescrição de remédios e tratamentos. É importante ainda que a acessibilidade às informações e serviços médicos pelo surdo seja objeto de políticas específicas de saúde, com campanhas que contemplem todas as diferenças linguísticas.

Referência: 
HAUSER, P.C.; O´HEARN, A.; MCKEE, M.; STEIDER, A.; THEW, D. Deaf epistemology: deafhood and deafness. American Annals of the Deaf, v. 154, n. 5, 2010.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

OLIVER SACKS, COMPANHEIRO DE VIAGEM AO MUNDO DOS SURDOS

Oliver Sacks, neurologista britânico, atingiu uma fama pouco comum para um cientista, embora talvez proporcional ao seu empenho em tornar a ciência e o conhecimento acessíveis a todos. Escritor de diversos livros, alguns transformados em filme como Tempo de Despertar e À Primeira Vista, Oliver Sacks tem uma escrita envolvente e que revela a cada linha seu enorme respeito pelo outro e curiosidade insaciável pelo mundo.

Infelizmente, há pouco menos de dois meses (30/08/2015), ele faleceu em consequência de um câncer. Oliver Sacks escreveu até seus últimos dias, sua autobiografia intitulada Sempre em Movimento – Uma Vida, lançada esse ano, vale à pena ser lida. Porém, é sobre um livro de 1989 que eu gostaria de comentar neste texto, que pretende ser uma homenagem. Em Vendo Vozes, uma Viagem ao Mundo dos Surdos (título original Seeing voices: A journey into the land of the deaf), Oliver Sacks relata, de forma ao mesmo tempo implicada e com rigor científico, seu primeiro contato com a realidade dos surdos. 

Para o autor, essa realidade, até então pouco conhecida e marcada por estereótipos, chega por meio de um livro: When the mind hears: a history of the deaf, de Harlan Lane. Oliver Sacks não se contenta, contudo, em olhar de longe esse novo mundo que então se apresenta, mas parte, como um viajante que explora uma paisagem desconhecida, a questionar um a um os mitos que comumente povoam o imaginário social sobre a surdez e os surdos. É isso que faz desse livro, considerando-se o viés histórico, afinal, foi escrito a mais de 25 anos, uma leitura de fundamental interesse e importância para surdos e ouvintes, profissionais e familiares, leigos e pesquisadores. 


No primeiro capítulo, o autor refaz uma parte da história da surdez, por meio de relatos recolhidos na literatura sobre a vivência de alguns surdos. No segundo capítulo, ele demonstra a importância do acesso à linguagem e explora as especificidades neurológicas do uso das línguas de sinais. No último capítulo, como um bônus, Oliver Sacks faz um relato apaixonado, ainda que lúcido, sobre a greve dos estudantes da Universidade Gallaudet, em 1988. Neste episódio histórico, os alunos da então única universidade dedicada à educação de surdos, por ocasião da escolha do novo presidente, exigiram e garantiram a eleição pelo conselho de um presidente surdo. 

Vendo Vozes, uma Viagem ao Mundo dos Surdos é uma leitura que recomendo fortemente, afinal, é um prazer ter Oliver Sacks como companheiro de viagem, com sua sensibilidade e generosidade. Essa pode ser, para aqueles que não o conhecem, uma porta de entrada no mundo de Oliver Sacks, um mundo cheio de histórias fantásticas, porque absolutamente humano. 

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

EDUCAÇÃO BILÍNGUE, UMA BREVÍSSIMA INTRODUÇÃO

Como prometido, encerrando os textos dedicados ao Setembro Azul, falo um pouco sobre a educação bilíngue, importante reivindicação do movimento surdo. Há um número significativo de surdos, de familiares e de profissionais que se dedicam a estudar a surdez que lutam pela garantia de que os surdos recebam sua escolarização em língua de sinais; considerada a língua natural dos surdos, por ser aquela à qual eles podem ter um acesso irrestrito, caso expostos a um ambiente em que é usada de forma significativa. Neste caso, o português, na sua versão oral e/ou escrita, assume o papel de segunda língua e é por isso que falamos em educação bilíngue.

Para explicar a necessidade de que os surdos sejam escolarizados em língua de sinais, muitas vezes, compara-se a experiência do surdo inserido em uma classe regular, sem adaptação, àquela de crianças que são escolarizadas em um idioma diferente do seu. No entanto, eu sempre acho que essa comparação não nos dá a verdadeira medida do que passa uma criança ou adolescente surdos nessa situação. Há pelo menos dois fatores que precisam ser levados em consideração.

Em primeiro lugar, não se trata apenas de outra língua, mas de uma língua à qual o surdo tem um acesso apenas parcial e não espontâneo, ou seja, depende de um trabalho de habilitação auditiva e educação da palavra. Então, imagine que você se comunica oralmente, mas frequenta uma escola onde as pessoas se comunicam telepaticamente. Elas não emitem sons, mas movimentam seus lábios de acordo com o comprimento e intensidade das ondas mentais pelas quais se comunicam. Aos poucos, você até percebe a repetição de certos padrões de movimento e pode decodificar pequenas mensagens, mas, imagine como seria compreender todo o conteúdo de história, matemática, geografia, física... apenas a partir desses sinais precários. Certamente, essa é uma imagem fantasiosa que também tem seus limites, como toda comparação, mas me parece mais precisa.

Em segundo lugar, mesmo quando a criança se comunica de forma oral e via leitura labial, para o surdo, a inserção na língua falada se dá em um ritmo diferente daquele vivido pela criança ouvinte, que tem acesso irrestrito e imediato ao som. Na escola, a criança surda, em processo de oralização, está exposta a uma dupla tarefa: aprender a linguagem e aprender os conteúdos; ou seja, ela não dispõe um referencial conceitual sobre o qual se apoiar para se apropriar dos conteúdos, seu vocabulário se constrói simultaneamente, dificultando enormemente sua compreensão. Isso resulta, muitas vezes, em uma escolarização na qual a forma da comunicação assume um papel mais importante do que o conteúdo escolar e do que a função expressiva da linguagem.

O debate se estende também às diferentes formas possíveis de implementação do bilinguismo na escola. Há quem considere que nenhuma experiência atual corresponde ao que seria uma educação verdadeiramente bilíngue. A discussão não é simples e provoca polêmicas acaloradas. Opiniões contrárias à educação bilíngue são desenvolvidas por profissionais competentes, que apresentam argumentos diversos. No entanto, uma coisa é certa, ainda não encontramos uma proposta satisfatória para a educação dos surdos, que não apenas atenda às suas necessidades, mas que se apoie sobre suas potencialidades.

domingo, 20 de setembro de 2015

SETEMBRO AZUL... MAS, POR QUE SETEMBRO?

Setembro é um mês especial para os Surdos do mundo todo e por isso, no Brasil, foi escolhido como um mês em que são comemoradas as conquistas e fortalecidas novas lutas pelos direitos dos Surdos: o Setembro Azul. Você sabe por que esse mês é tão importante? Veja abaixo alguns acontecimentos e datas que o marcam:

Reconhecimento da profissão de intérpretes de LIBRAS – Em 1º de setembro de 2010, foi promulgada a Lei 12.319, que regulamenta a profissão de Tradutor e Intérprete de Língua Brasileira de Sinais. A regulamentação permite um maior rigor com relação à formação do intérprete e também quanto a sua conduta ética. Além disso, ela representa uma valorização do profissional, que passa a ter seus direitos reconhecidos.

Dia Mundial da Língua de Sinais – Esse dia é comemorado em 10 de setembro. Esse dia foi escolhido porque nesse mesmo período (entre 06 e 11 de setembro de 1880) aconteceu o Congresso de Milão, no qual as línguas de sinais foram proibidas nas escolas de surdos. Foi preciso cerca de cem anos pra que essa proibição fosse revogada.  Atualmente, o uso da língua de sinais se dá por uma parcela significativa da população surda de todo o mundo e seu reconhecimento como língua tem um papel fundamental no reconhecimento dos surdos como uma comunidade linguística, com uma cultura particular. 



Dia Nacional do Surdo – No dia 26 de setembro, comemoramos o Dia Nacional do Surdo. Essa data foi instituída pelo então presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, por meio da Lei 11.976/2008, e foi escolhida por ser o dia da inauguração, em 1857, da primeira escola de surdos no Brasil, o atual Instituto Nacional de Educação de Surdos, INES, no Rio de Janeiro. 
Semana Internacional dos Surdos – Em 1958, a Federação Internacional dos Surdos escolheu o último domingo do mês de setembro para celebrar o seu primeiro congresso mundial, que acontecera em setembro de 1951. Desde então, este dia tornou-se o Dia Internacional do Surdo e a última semana do mês de setembro passou a ser uma semana de celebração e luta para os surdos do mundo todo. 

O primeiro Setembro Azul - Em setembro de 2011, aconteceram em todo o país importantes manifestações organizadas pelo Movimento Surdo em Favor da Educação e da Cultura Surda. Tais manifestações foram convocadas em reação às recomendações consideradas equivocadas emitidas pelo Conselho Nacional de Educação (CONAE), realizado no ano anterior, e ao risco de fechamento do INES. Uma das principais reivindicações desse movimento é a garantia da educação bilíngue para surdos. Mas esse é um assunto para a próxima postagem.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

SETEMBRO AZUL... MAS, POR QUE AZUL?

Setembro é um mês especial para a luta dos surdos pelo reconhecimento de seus direitos. Nele acontece o movimento Setembro Azul. Por isso, os textos deste mês serão dedicados a esse tema. No primeiro deles, trago uma explicação sobre o porquê de a cor azul ter sido escolhida como símbolo de luta da comunidade surda. Essa é uma história triste, mas que precisa ser lembrada, para que nunca se repita*.

Todos já ouvimos falar do extermínio dos judeus pelos nazistas, durante o governo de Hitler, na Alemanha. No entanto, os judeus não foram o único grupo perseguido pelos nazistas: ciganos, homossexuais, doentes mentais, deficientes e surdos também foram alvo da ideologia nazista. O objetivo desta ideologia era criar o que chamavam de “raça pura alemã”. Para os nazistas, assim como em muitas outras épocas e lugares, a surdez estava associada a dificuldades intelectuais e era apresentada para o público, juntamente com a doença mental e outras deficiências, como geradora de altos custos para o Estado. Fazia parte do plano da propaganda nazista fazer crer à população que as dificuldades econômicas pelas quais passava a Alemanha estavam associadas aos gastos com tratamentos e educação de pessoas com deficiências ou transtornos mentais.

Uma das primeiras ações empregadas para a construção da “nova raça alemã” foi a esterilização compulsória de pessoas deficientes, visando à erradicação dos genes tidos como inferiores. No caso dos surdos, o procedimento era imposto àqueles cuja surdez era diagnosticada como hereditária. Estima-se que cerca de 17.000 surdos tenham sido esterilizados entre os anos de 1933 e 1945. As cirurgias eram realizadas em grande escala e em pessoas ainda bastante jovens. Conta-se que a mais nova delas tinha apenas 09 anos. As técnicas empregadas eram brutais, muitas vezes sem anestesia ou com anestesia insuficiente, e os cuidados pós-operatórios eram inexistentes, provocando outros problemas físicos secundários, além das graves consequências emocionais.

Mas os nazistas foram ainda mais longe. A lei que instaurou o Programa de Eutanásia, datada de 01 de setembro de 1939, assinada retroativamente para coincidir com o início da II guerra mundial, visava eliminar as pessoas com deficiência da Alemanha. Com o pretexto de receber uma educação e cuidado mais adequado, milhares de crianças deficientes foram retiradas de seus pais e enviadas para supostos hospitais, que, na verdade, eram centros de extermínio. Diariamente, as crianças eram assassinadas por meio de gases tóxicos. Calcula-se que cerca de 1.600 surdos foram assassinados entre as mais 70.000 pessoas que perderam suas vidas, apenas nos centros de extermínio de pessoas deficientes. Esses centros acabaram se tornando espaço de teste para as formas de eliminação empregadas posteriormente nos campos de concentração.

Os nazistas usavam um sistema de cores e símbolos para identificar os perseguidos. No caso dos judeus, uma estrela amarela era presa às roupas. No caso dos surdos e deficientes, a cor atribuída seria a azul. Justamente como forma de homenagear aos surdos que sofreram nesse período e de simbolizar a opressão e o preconceito que ainda acontecem, essa cor foi escolhida pela comunidade surda para representar sua luta pelo reconhecimento de seus direitos.



* Principais fontes de informação:

Documentário Deaf Holocaust, produzido pela BBC.
Documentário Arquitetura do Mal, de Peter Cohen.

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

SURDO, SIM. MUDO, NÃO!

Há algum tempo que o termo surdo-mudo já não figura mais no vocabulário dos surdos e profissionais que trabalham com a surdez, nos nomes das instituições ou em documentos oficiais. Mesmo assim, ele ainda aparece na linguagem corrente e é empregado por muitas pessoas pra se referir aos surdos. Se você é uma dessas pessoas, veja aqui três razões pelas quais não devemos chamar os surdos de mudos.

A primeira delas se sustenta no aspecto orgânico, ou, anatomo-fisiológico. O surdo, na maioria dos casos, não tem nenhum problema no aparelho fonoarticulatório ou a nível cerebral que o impeça de falar.  O que acontece é que a fala se aprende, salvo por meio de tratamento específico, na medida em que vamos escutando as pessoas falando ao nosso redor. Como, pela falta da escuta, o surdo não aprende a falar de forma espontânea, por muito tempo acreditou-se que eles fossem também mudos, daí a designação surdo-mudo que persiste até hoje em muitos idiomas. Na verdade, mesmo em algumas línguas de sinais, o sinal de surdo ainda remonta a esse antigo termo. É o caso da LIBRAS, por exemplo, em que o sinal de surdo consiste em colocar o dedo indicador na orelha e depois na boca, fazendo referência tanto ao não ouvir quanto ao não falar.

Fonte: arquivo pessoal


A segunda razão se liga à grande variedade de condições que são agrupadas sobre o termo surdo. Muitos surdos perdem a audição após a aquisição da linguagem oral, são os surdos pós-linguais. Para eles, de modo geral, a língua oral continua sendo sua principal forma de expressão. Além disso, muitos surdos, mesmo pré-linguais, aprendem a falar por meio de tratamento fonoaudiológico e com a ajuda de aparelhos auditivos e implantes cocleares. Portanto, os surdos que falam são cada vez mais numerosos.

A última razão que apresento, embora essas três não sejam as únicas, se relaciona ao sentido simbólico da mudez, ou seja, à relação entre a designação mudo e a ideia de não expressão. Também nesse sentido, os surdos não são mudos. Os surdos se expressam e o fazem de várias maneiras, seja por meio da língua sinais, seja falando, seja pela escrita, pela arte, enfim, pelas diversas linguagens das quais dispomos. Há ainda surdos que, mesmo podendo, decidem não falar para manifestar seu desacordo com a oralização, mas mesmo isso não faz deles mudos, já que a própria recusa em falar, nesse caso, é uma expressão em si mesma.

Embora mudar os hábitos de linguagem seja difícil, abandonar essa antiga designação, surdo-mudo, ou ainda termos como mudo ou mudinho, demonstra sensibilidade e respeito às reivindicações dos surdos e atenção às transformações em curso na nossa sociedade.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

EM DUPLO RISCO: MULHER E DEFICIENTE

Há exatos 09 anos (07/08/2006) foi sancionada a Lei Maria da Penha. Embora as ações e discussões que derivaram dela não tenham acabado com a violência doméstica contra a mulher no país, elas contribuíram para encorajar a denúncia. Em 2014, a Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) recebeu, em média, mais de 1300 denúncias de violência contra a mulher por dia. Em relação ao ano anterior, houve um aumento de 50% nas denúncias de cárcere privado e de 20% nas denúncias de violência sexual (estupro, assédio e exploração sexual). As denúncias de violência física chegaram a 27.369, correspondendo a 51,68% do total. Nunca é demais lembrar que o número de denúncias está longe de corresponder à totalidade de ocorrências e que a violência física representa apenas um dos tipos de violência cometida contra a mulher.

Fonte: arquivo pessoal
Quando nos voltamos para o universo das mulheres com deficiência, a situação é ainda mais grave. Em Portugal, 50% das mulheres deficientes que participaram de uma pesquisa relataram ter sofrido violência de gênero. No Canadá, em pesquisa realizada em 1989, 40% das mulheres com deficiência que responderam aos questionários afirmaram ter sido vítimas de abuso e 12%, vítimas de estupro. Menos da metade delas registrou queixa. Embora outras pesquisas, tanto nacionais quanto internacionais, ratifiquem essa porcentagem, a necessidade de estudos mais aprofundados é evidente.

Além das formas de violência de gênero perpetradas contra as mulheres em geral, a mulher com deficiência está sujeita também às formas de violência cometidas contra os deficientes, tais como, a imposição de tratamentos médicos intrusivos e não consentidos, por vezes com consequências irreversíveis, ou, pelo contrário, a não garantia de tratamentos e cuidados necessários. A mulher deficiente fica colocada no entrecruzamento perverso de dois preconceitos milenares, encontrando-se numa posição de duplo risco.

Algumas hipóteses tentam explicar essa triste prevalência: as mulheres com deficiência, em geral, são menos escolarizadas; vivem uma situação de maior dependência econômica; têm uma circulação mais restrita nos meios sociais e, portanto, mais dificuldade em encontrar suporte; têm menos condição de acessar os serviços de apoio existentes e, em alguns casos, menos credibilidade diante das autoridades que deveriam protegê-las. Com isso, os agressores, quase sempre pessoas próximas, se encontram em uma posição de maior poder e têm mais certeza de permanecerem impunes por seus crimes. Essas hipóteses, no entanto, não explicam a violência, elas apenas descrevem a situação de maior vulnerabilidade em que se encontra a mulher deficiente. Entender porque as pessoas se aproveitam dessa condição pra praticar atos de violência é bem mais complexo.

A violência é um sintoma da desumanização do outro: aceito como ser humano aquele que reconheço como igual ou como ideal, porque vejo nele as características que admiro em mim ou que desejo ter. Todos os outros são menos humanos ou mesmo não humanos, são objetos, dos quais posso dispor de acordo com meus desejos, humores e medos. Nestes, apenas vejo as partes de mim que não aceito e por isso não os suporto. Parte da violência é fruto dessa objetificação: seja como ato de exercício perverso de poder daquele que se entende como ser humano verso aquele a quem considera objeto, seja como ato de reação daquele que se viu reiteradamente colocado neste lugar.

* Os links inseridos ao longo do texto levam para as fontes de onde foram extraídas as informações usadas.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

VOCABULÁRIO DA SURDEZ PARA INICIANTES – PARTE II

Trago mais alguns conceitos relacionados à linguagem e comunicação dos surdos e entre surdos e ouvintes (veja a parte I aqui). Lembro que são descrições introdutórias e parciais. Caso alguém queira indicação de material para aprofundamento, posso fornecer com prazer.

Língua oral (falada) complementada – esse é um método usado para facilitar a leitura orofacial (LOF) e, portanto, a compreensão da linguagem oral pelo surdo. De modo simplificado, a leitura orofacial, ou leitura labial, se baseia na correspondência entre configuração e movimentação dos lábios e da língua e os fonemas (sons) que compõem as palavras. No entanto, algumas diferenças são imperceptíveis visualmente, por exemplo, a distinção entre os sons de “t” e “d” ou de “f” e “v”, dificultando ou impedindo a compreensão. Na língua oral complementada, sinais específicos para cada fonema são realizados próximo ao rosto sempre que os sons de difícil distinção são pronunciados, de modo que essas dicas visuais se somam à leitura labial. Embora o uso dessa técnica possa trazer benefícios, ela exige uma grande capacidade de concentração do surdo e uma grande habilidade linguística de quem a realiza.

Português sinalizado – diferente da língua de sinais, que possui uma estrutura própria, o português sinalizado é a tradução literal do português oral para sinais, ou seja, mantendo a estrutura do idioma. O português sinalizado é usado principalmente no contexto educativo, como uma forma de transmissão de conteúdos, porém, para o surdo que constrói seu pensamento a partir da língua de sinais, ele pode gerar confusões importantes.

Datilologia – é a utilização do alfabeto manual para soletrar palavras. Na datilologia cada sinal corresponde a uma letra do alfabeto utilizado pelo idioma oral. Ela funciona como uma escrita sinalizada. Algumas pessoas pensam que a língua de sinais se resume à datilologia, mas não é o caso. Seu uso é comum quando se quer expressar uma palavra para a qual não existe um sinal na língua de sinais ou para comunicar um nome próprio. Sua compreensão depende do grau de domínio da escrita pelo surdo. Consta na literatura que o alfabeto manual foi criado por monges espanhóis que viviam em voto de silêncio. Com a datilologia eles podiam se comunicar, sem quebrar seus votos. Posteriormente, este alfabeto foi integrado à educação de surdos e surdo-cegos.

Escrita de Sinais ou Signwriting – sistema de notação da língua de sinais. Esse sistema foi criado pela americana Valerie Sutton, na década de 1970, para ser usado para a transcrição de qualquer língua de sinais e, desde então, vem sendo desenvolvido por diversos pesquisadores. Na escrita de sinais, um conjunto de símbolos visuais é usado para representar os elementos das línguas de sinais que são responsáveis por dar sentido ao que está sendo comunicado: a configuração das mãos, seu posicionamento em relação ao corpo, o movimento que realizam e a expressão facial. A possibilidade de um registro gráfico das línguas de sinais é entendida como uma forma de garantir uma memória permanente do patrimônio cultural da comunidade surda, além de permitir a comunicação à distância. Atualmente, com a maior facilidade do uso e compartilhamento de vídeos, essa necessidade foi parcialmente sanada.


Dúvidas? Sugestões? Críticas? Não hesitem em me dizer, elas ajudam a melhorar o blog.