* Pesquisa realizada como aluna do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal da Bahia, com financiamento da CAPES, pelo Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior, e da Fapesb, pelo Programa de Bolsa de Doutorado.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

LÍNGUA DE SINAIS KA’APOR BRASILEIRA

O Museu Emílio Goeldi é um pedaço da floresta no centro de Belém. Além de plantas e bichos da Amazônia, alguns correndo soltos pelo mato, o museu conta com um espaço de exposições, o Pavilhão de Exposições Domingos Soares Ferreira Penna, também chamado de A Rocinha. Em visita ao museu pude apreciar a exposição Festa do Cauim, que retrata a cultura e tradições do povo Ka’apor, através dessa festa em que são celebrados diversos rituais de passagem, vividos por todos os membros da tribo. Ka’apor, em tupi, significa Povo da Mata (Ka’a, mata e poro, povo). Esse povo é também chamado de Urubu-Ka’apor. Estão presentes no sul do estado do Maranhão, tendo migrado para essa região, vindos do Pará, no fim do século XIX. Atualmente, sua população soma cerca de 2.300 índios. 

Na exposição, além de conhecer algumas lendas, vestimentas, objetos e detalhes dos rituais que acontecem durante a Festa do Cauim, aprendi que os índios Ka’apor têm uma língua de sinais própria. Como a LIBRAS, essa língua se diferencia de mímicas e gestos, possuindo uma estrutura bem definida e sendo usada para a comunicação entre e com os surdos da aldeia. A proporção de surdos entre os Ka’apor já foi bastante elevada, quando comparada com os dados nacionais, chegando a um surdo para cada 75 ouvintes, no final da década de 1960. Por isso, muitos índios não surdos conhecem e utilizam a língua de sinais ka’apor no seu cotidiano. 

Alguns fatores podem explicar a alta prevalência de surdos em uma população, tais como aspectos genéticos e a prática de endogamia (casamento entre parentes), como é o caso da ilha Marta’s Vineyard, na costa nordeste dos Estados Unidos, onde a incidência de surdez chegava à 25%, em algumas regiões. Neste caso, casamentos consanguíneos, entre os primeiros colonos, ainda no século XVII, potencializaram a transmissão de um gene recessivo transmissor de surdez*. Entre os Ka’apor é possível que a alta ncidência de varíola aviária tenha contribuído para o grande número de surdos, porém, não há uma pesquisa consistente sobre isso.

A Língua de Sinais Ka’apor Brasileira foi registrada pela primeira vez na década de 1950, no entanto, não se sabe desde quando ela é praticada por esse povo. O que se sabe é que, entre os Ka’apor, os surdos são integrados à vida cotidiana da tribo e não sofrem discriminação. Esse exemplo dos Ka’apor nos mostra de forma contundente que quando a surdez não é vista como uma deficiência, mas como uma característica, surdos e ouvintes podem conviver em harmonia.

Arquivo pessoal


* Fonte: Vendo vozes: uma viagem ao mundo dos surdos, de Oliver Sacks.

Veja um vídeo de uma história contada em Língua de Sinais Ka'apor Brasileira,
gravado pelo pesquisador Gustavo Godoy, a quem agradeço por esclarecimentos prestados.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

SURDEZ E CUIDADOS COM A SAÚDE

Ainda que a surdez possa estar associada a outras condições médicas, como em algumas síndromes, ou infecções virais, por exemplo, ela não traz com ela nenhuma doença, fragilidade ou problema de saúde, de qualquer natureza. No entanto, você sabia que crianças e adultos surdos, especialmente surdos pré-linguais, podem estar mais expostos a acidentes e problemas de saúde, por conta dos entraves da comunicação? 

Hauser e colaboradores, em artigo escrito em 2010, relatam estudos que mostram que as crianças surdas estão mais expostas a acidentes e machucados. Segundo os autores, isso deve estar associado ao fato de os filhos geralmente serem alertados pelos pais sobre perigos e ensinados sobre como e de que se proteger de modo oral. A informação sobre lugares e situações perigosas circula entre as crianças e pessoas próximas eminentemente de modo oral, seja diretamente, seja ouvindo conversas de terceiros.

Direito sobre imagem: Jeitos de Ser e Conviver


Surdos também apresentaram dificuldade em se familiarizar com a história médica da família, conhecimento importante para os cuidados com a própria saúde. Saber daquela tia que teve câncer de mama, ou do avô que faleceu de problema cardíaco, ou daquela prima que tem diabetes, todas essas são informações que nos ajudam a conhecer nossas heranças genéticas e a nos prevenir. Acontece que essas histórias são comentadas, em geral, informalmente, em conversas familiares. 

Os autores citam também vários estudos que demonstram um elevado desconhecimento das pessoas surdas com relação a sintomas de doenças e cuidados com a saúde, quando comparados com adultos ouvintes. Eles supõem que grande parte deste conhecimento é adquirida de modo incidental e informal, nas conversas cotidianas. Cabe lembrar que cerca de 95% das crianças surdas nasce em famílias de ouvintes, muitas delas com pouco ou nenhum contato prévio com surdos. Estas famílias costumam organizar suas trocas cotidianas essencialmente de modo oral.

Direito sobre imagem: Jeitos de Ser e Conviver


Isso significa que toda uma série de conceitos, comportamentos, posturas, cuidados, que são transmitidos entre as pessoas de modo espontâneo, ou pelo que chamamos de aprendizagem incidental, precisa ser ensinada aos surdos de forma sistemática. Essa é uma compreensão difícil para os pais, já que a maioria deles viveu uma experiência amplamente sustentada nas trocas orais. No entanto, é importante que a família se ocupe disso de forma consciente. E se você é surdo, fique atento, pergunte, procure informações e se intere sobre a história médica da sua família. 

Do mesmo modo, os profissionais de saúde devem garantir que toda informação e orientação seja compreendida integralmente pelo surdo nas situações de atendimentos clínicos, de realização de exames e de prescrição de remédios e tratamentos. É importante ainda que a acessibilidade às informações e serviços médicos pelo surdo seja objeto de políticas específicas de saúde, com campanhas que contemplem todas as diferenças linguísticas.

Referência: 
HAUSER, P.C.; O´HEARN, A.; MCKEE, M.; STEIDER, A.; THEW, D. Deaf epistemology: deafhood and deafness. American Annals of the Deaf, v. 154, n. 5, 2010.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

OLIVER SACKS, COMPANHEIRO DE VIAGEM AO MUNDO DOS SURDOS

Oliver Sacks, neurologista britânico, atingiu uma fama pouco comum para um cientista, embora talvez proporcional ao seu empenho em tornar a ciência e o conhecimento acessíveis a todos. Escritor de diversos livros, alguns transformados em filme como Tempo de Despertar e À Primeira Vista, Oliver Sacks tem uma escrita envolvente e que revela a cada linha seu enorme respeito pelo outro e curiosidade insaciável pelo mundo.

Infelizmente, há pouco menos de dois meses (30/08/2015), ele faleceu em consequência de um câncer. Oliver Sacks escreveu até seus últimos dias, sua autobiografia intitulada Sempre em Movimento – Uma Vida, lançada esse ano, vale à pena ser lida. Porém, é sobre um livro de 1989 que eu gostaria de comentar neste texto, que pretende ser uma homenagem. Em Vendo Vozes, uma Viagem ao Mundo dos Surdos (título original Seeing voices: A journey into the land of the deaf), Oliver Sacks relata, de forma ao mesmo tempo implicada e com rigor científico, seu primeiro contato com a realidade dos surdos. 

Para o autor, essa realidade, até então pouco conhecida e marcada por estereótipos, chega por meio de um livro: When the mind hears: a history of the deaf, de Harlan Lane. Oliver Sacks não se contenta, contudo, em olhar de longe esse novo mundo que então se apresenta, mas parte, como um viajante que explora uma paisagem desconhecida, a questionar um a um os mitos que comumente povoam o imaginário social sobre a surdez e os surdos. É isso que faz desse livro, considerando-se o viés histórico, afinal, foi escrito a mais de 25 anos, uma leitura de fundamental interesse e importância para surdos e ouvintes, profissionais e familiares, leigos e pesquisadores. 


No primeiro capítulo, o autor refaz uma parte da história da surdez, por meio de relatos recolhidos na literatura sobre a vivência de alguns surdos. No segundo capítulo, ele demonstra a importância do acesso à linguagem e explora as especificidades neurológicas do uso das línguas de sinais. No último capítulo, como um bônus, Oliver Sacks faz um relato apaixonado, ainda que lúcido, sobre a greve dos estudantes da Universidade Gallaudet, em 1988. Neste episódio histórico, os alunos da então única universidade dedicada à educação de surdos, por ocasião da escolha do novo presidente, exigiram e garantiram a eleição pelo conselho de um presidente surdo. 

Vendo Vozes, uma Viagem ao Mundo dos Surdos é uma leitura que recomendo fortemente, afinal, é um prazer ter Oliver Sacks como companheiro de viagem, com sua sensibilidade e generosidade. Essa pode ser, para aqueles que não o conhecem, uma porta de entrada no mundo de Oliver Sacks, um mundo cheio de histórias fantásticas, porque absolutamente humano. 

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

EDUCAÇÃO BILÍNGUE, UMA BREVÍSSIMA INTRODUÇÃO

Como prometido, encerrando os textos dedicados ao Setembro Azul, falo um pouco sobre a educação bilíngue, importante reivindicação do movimento surdo. Há um número significativo de surdos, de familiares e de profissionais que se dedicam a estudar a surdez que lutam pela garantia de que os surdos recebam sua escolarização em língua de sinais; considerada a língua natural dos surdos, por ser aquela à qual eles podem ter um acesso irrestrito, caso expostos a um ambiente em que é usada de forma significativa. Neste caso, o português, na sua versão oral e/ou escrita, assume o papel de segunda língua e é por isso que falamos em educação bilíngue.

Para explicar a necessidade de que os surdos sejam escolarizados em língua de sinais, muitas vezes, compara-se a experiência do surdo inserido em uma classe regular, sem adaptação, àquela de crianças que são escolarizadas em um idioma diferente do seu. No entanto, eu sempre acho que essa comparação não nos dá a verdadeira medida do que passa uma criança ou adolescente surdos nessa situação. Há pelo menos dois fatores que precisam ser levados em consideração.

Em primeiro lugar, não se trata apenas de outra língua, mas de uma língua à qual o surdo tem um acesso apenas parcial e não espontâneo, ou seja, depende de um trabalho de habilitação auditiva e educação da palavra. Então, imagine que você se comunica oralmente, mas frequenta uma escola onde as pessoas se comunicam telepaticamente. Elas não emitem sons, mas movimentam seus lábios de acordo com o comprimento e intensidade das ondas mentais pelas quais se comunicam. Aos poucos, você até percebe a repetição de certos padrões de movimento e pode decodificar pequenas mensagens, mas, imagine como seria compreender todo o conteúdo de história, matemática, geografia, física... apenas a partir desses sinais precários. Certamente, essa é uma imagem fantasiosa que também tem seus limites, como toda comparação, mas me parece mais precisa.

Em segundo lugar, mesmo quando a criança se comunica de forma oral e via leitura labial, para o surdo, a inserção na língua falada se dá em um ritmo diferente daquele vivido pela criança ouvinte, que tem acesso irrestrito e imediato ao som. Na escola, a criança surda, em processo de oralização, está exposta a uma dupla tarefa: aprender a linguagem e aprender os conteúdos; ou seja, ela não dispõe um referencial conceitual sobre o qual se apoiar para se apropriar dos conteúdos, seu vocabulário se constrói simultaneamente, dificultando enormemente sua compreensão. Isso resulta, muitas vezes, em uma escolarização na qual a forma da comunicação assume um papel mais importante do que o conteúdo escolar e do que a função expressiva da linguagem.

O debate se estende também às diferentes formas possíveis de implementação do bilinguismo na escola. Há quem considere que nenhuma experiência atual corresponde ao que seria uma educação verdadeiramente bilíngue. A discussão não é simples e provoca polêmicas acaloradas. Opiniões contrárias à educação bilíngue são desenvolvidas por profissionais competentes, que apresentam argumentos diversos. No entanto, uma coisa é certa, ainda não encontramos uma proposta satisfatória para a educação dos surdos, que não apenas atenda às suas necessidades, mas que se apoie sobre suas potencialidades.

domingo, 20 de setembro de 2015

SETEMBRO AZUL... MAS, POR QUE SETEMBRO?

Setembro é um mês especial para os Surdos do mundo todo e por isso, no Brasil, foi escolhido como um mês em que são comemoradas as conquistas e fortalecidas novas lutas pelos direitos dos Surdos: o Setembro Azul. Você sabe por que esse mês é tão importante? Veja abaixo alguns acontecimentos e datas que o marcam:

Reconhecimento da profissão de intérpretes de LIBRAS – Em 1º de setembro de 2010, foi promulgada a Lei 12.319, que regulamenta a profissão de Tradutor e Intérprete de Língua Brasileira de Sinais. A regulamentação permite um maior rigor com relação à formação do intérprete e também quanto a sua conduta ética. Além disso, ela representa uma valorização do profissional, que passa a ter seus direitos reconhecidos.

Dia Mundial da Língua de Sinais – Esse dia é comemorado em 10 de setembro. Esse dia foi escolhido porque nesse mesmo período (entre 06 e 11 de setembro de 1880) aconteceu o Congresso de Milão, no qual as línguas de sinais foram proibidas nas escolas de surdos. Foi preciso cerca de cem anos pra que essa proibição fosse revogada.  Atualmente, o uso da língua de sinais se dá por uma parcela significativa da população surda de todo o mundo e seu reconhecimento como língua tem um papel fundamental no reconhecimento dos surdos como uma comunidade linguística, com uma cultura particular. 



Dia Nacional do Surdo – No dia 26 de setembro, comemoramos o Dia Nacional do Surdo. Essa data foi instituída pelo então presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, por meio da Lei 11.976/2008, e foi escolhida por ser o dia da inauguração, em 1857, da primeira escola de surdos no Brasil, o atual Instituto Nacional de Educação de Surdos, INES, no Rio de Janeiro. 
Semana Internacional dos Surdos – Em 1958, a Federação Internacional dos Surdos escolheu o último domingo do mês de setembro para celebrar o seu primeiro congresso mundial, que acontecera em setembro de 1951. Desde então, este dia tornou-se o Dia Internacional do Surdo e a última semana do mês de setembro passou a ser uma semana de celebração e luta para os surdos do mundo todo. 

O primeiro Setembro Azul - Em setembro de 2011, aconteceram em todo o país importantes manifestações organizadas pelo Movimento Surdo em Favor da Educação e da Cultura Surda. Tais manifestações foram convocadas em reação às recomendações consideradas equivocadas emitidas pelo Conselho Nacional de Educação (CONAE), realizado no ano anterior, e ao risco de fechamento do INES. Uma das principais reivindicações desse movimento é a garantia da educação bilíngue para surdos. Mas esse é um assunto para a próxima postagem.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

SETEMBRO AZUL... MAS, POR QUE AZUL?

Setembro é um mês especial para a luta dos surdos pelo reconhecimento de seus direitos. Nele acontece o movimento Setembro Azul. Por isso, os textos deste mês serão dedicados a esse tema. No primeiro deles, trago uma explicação sobre o porquê de a cor azul ter sido escolhida como símbolo de luta da comunidade surda. Essa é uma história triste, mas que precisa ser lembrada, para que nunca se repita*.

Todos já ouvimos falar do extermínio dos judeus pelos nazistas, durante o governo de Hitler, na Alemanha. No entanto, os judeus não foram o único grupo perseguido pelos nazistas: ciganos, homossexuais, doentes mentais, deficientes e surdos também foram alvo da ideologia nazista. O objetivo desta ideologia era criar o que chamavam de “raça pura alemã”. Para os nazistas, assim como em muitas outras épocas e lugares, a surdez estava associada a dificuldades intelectuais e era apresentada para o público, juntamente com a doença mental e outras deficiências, como geradora de altos custos para o Estado. Fazia parte do plano da propaganda nazista fazer crer à população que as dificuldades econômicas pelas quais passava a Alemanha estavam associadas aos gastos com tratamentos e educação de pessoas com deficiências ou transtornos mentais.

Uma das primeiras ações empregadas para a construção da “nova raça alemã” foi a esterilização compulsória de pessoas deficientes, visando à erradicação dos genes tidos como inferiores. No caso dos surdos, o procedimento era imposto àqueles cuja surdez era diagnosticada como hereditária. Estima-se que cerca de 17.000 surdos tenham sido esterilizados entre os anos de 1933 e 1945. As cirurgias eram realizadas em grande escala e em pessoas ainda bastante jovens. Conta-se que a mais nova delas tinha apenas 09 anos. As técnicas empregadas eram brutais, muitas vezes sem anestesia ou com anestesia insuficiente, e os cuidados pós-operatórios eram inexistentes, provocando outros problemas físicos secundários, além das graves consequências emocionais.

Mas os nazistas foram ainda mais longe. A lei que instaurou o Programa de Eutanásia, datada de 01 de setembro de 1939, assinada retroativamente para coincidir com o início da II guerra mundial, visava eliminar as pessoas com deficiência da Alemanha. Com o pretexto de receber uma educação e cuidado mais adequado, milhares de crianças deficientes foram retiradas de seus pais e enviadas para supostos hospitais, que, na verdade, eram centros de extermínio. Diariamente, as crianças eram assassinadas por meio de gases tóxicos. Calcula-se que cerca de 1.600 surdos foram assassinados entre as mais 70.000 pessoas que perderam suas vidas, apenas nos centros de extermínio de pessoas deficientes. Esses centros acabaram se tornando espaço de teste para as formas de eliminação empregadas posteriormente nos campos de concentração.

Os nazistas usavam um sistema de cores e símbolos para identificar os perseguidos. No caso dos judeus, uma estrela amarela era presa às roupas. No caso dos surdos e deficientes, a cor atribuída seria a azul. Justamente como forma de homenagear aos surdos que sofreram nesse período e de simbolizar a opressão e o preconceito que ainda acontecem, essa cor foi escolhida pela comunidade surda para representar sua luta pelo reconhecimento de seus direitos.



* Principais fontes de informação:

Documentário Deaf Holocaust, produzido pela BBC.
Documentário Arquitetura do Mal, de Peter Cohen.

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

SURDO, SIM. MUDO, NÃO!

Há algum tempo que o termo surdo-mudo já não figura mais no vocabulário dos surdos e profissionais que trabalham com a surdez, nos nomes das instituições ou em documentos oficiais. Mesmo assim, ele ainda aparece na linguagem corrente e é empregado por muitas pessoas pra se referir aos surdos. Se você é uma dessas pessoas, veja aqui três razões pelas quais não devemos chamar os surdos de mudos.

A primeira delas se sustenta no aspecto orgânico, ou, anatomo-fisiológico. O surdo, na maioria dos casos, não tem nenhum problema no aparelho fonoarticulatório ou a nível cerebral que o impeça de falar.  O que acontece é que a fala se aprende, salvo por meio de tratamento específico, na medida em que vamos escutando as pessoas falando ao nosso redor. Como, pela falta da escuta, o surdo não aprende a falar de forma espontânea, por muito tempo acreditou-se que eles fossem também mudos, daí a designação surdo-mudo que persiste até hoje em muitos idiomas. Na verdade, mesmo em algumas línguas de sinais, o sinal de surdo ainda remonta a esse antigo termo. É o caso da LIBRAS, por exemplo, em que o sinal de surdo consiste em colocar o dedo indicador na orelha e depois na boca, fazendo referência tanto ao não ouvir quanto ao não falar.

Fonte: arquivo pessoal


A segunda razão se liga à grande variedade de condições que são agrupadas sobre o termo surdo. Muitos surdos perdem a audição após a aquisição da linguagem oral, são os surdos pós-linguais. Para eles, de modo geral, a língua oral continua sendo sua principal forma de expressão. Além disso, muitos surdos, mesmo pré-linguais, aprendem a falar por meio de tratamento fonoaudiológico e com a ajuda de aparelhos auditivos e implantes cocleares. Portanto, os surdos que falam são cada vez mais numerosos.

A última razão que apresento, embora essas três não sejam as únicas, se relaciona ao sentido simbólico da mudez, ou seja, à relação entre a designação mudo e a ideia de não expressão. Também nesse sentido, os surdos não são mudos. Os surdos se expressam e o fazem de várias maneiras, seja por meio da língua sinais, seja falando, seja pela escrita, pela arte, enfim, pelas diversas linguagens das quais dispomos. Há ainda surdos que, mesmo podendo, decidem não falar para manifestar seu desacordo com a oralização, mas mesmo isso não faz deles mudos, já que a própria recusa em falar, nesse caso, é uma expressão em si mesma.

Embora mudar os hábitos de linguagem seja difícil, abandonar essa antiga designação, surdo-mudo, ou ainda termos como mudo ou mudinho, demonstra sensibilidade e respeito às reivindicações dos surdos e atenção às transformações em curso na nossa sociedade.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

INSTITUTO NACIONAL DE JOVENS SURDOS DE PARIS: UM POUCO DE HISTÓRIA

O Instituto Nacional de Jovens Surdos de Paris, INJS, fundado em 1791, é a mais antiga escola pública e laica para surdos do mundo. A escola funciona nas mesmas instalações desde 1794, um lindo e amplo edifício com um enorme jardim. O instituto é fruto do trabalho do abade Charles-Michel de l'Epée, conhecido como Abbé de l’Epée (1712-1789).

Entre os séculos XVI e XVIII a educação de surdos no ocidente era restrita aos filhos de famílias ricas e tinha como principal objetivo ensinar-lhes a falar. Conta-se que, em 1760, o Abbé de l’Epée conheceu duas irmãs surdas que se comunicavam por meio de sinais e, desde então, passou a se dedicar ao desenvolvimento de uma pedagogia de ensino da linguagem (gestual e escrita), por meio de sinais.

Para combater a ideia corrente de que os surdos tinham uma inteligência limitada e um acesso restrito à linguagem, o Abbé de l’Epée organizava apresentações em que as pessoas podiam fazer perguntas aos surdos, sobre assuntos diversos, para comprovar seus conhecimentos. Com essas reuniões, o abade conseguia apoio para sua causa: a educação dos surdos de todas as condições sociais. O INJS foi fundado dois anos após sua morte e seu primeiro diretor foi Sicard, formado instrutor de surdos pelo Abeé de l’Epée e fundador do Instituto de Surdos de Bordeaux. Os alunos e professores do INJS influenciaram a educação de surdos em todo o mundo.

Em 1817, Laurent Clerc, aluno do instituto, ajudou Thomas Gallaudet na fundação do American Asylum for the Deaf, em Hartford, nos Estados Unidos, a primeira escola para surdos daquele país. Esta instituição certamente influenciou a criação, em 1864, da Gallaudet University, primeira e, por muito tempo, única instituição de ensino superior para surdos. Seu primeiro diretor foi Edward Gallaudet, filho de Thomas Gallaudet e Sophia Fowler Gallaudet. Sophia nasceu surda e, com ela, Edward Gallaudet aprendeu a língua de sinais como primeira língua. Ela teve um papel importante na consolidação da educação de surdos nos Estados Unidos.

No Brasil, em 1857, o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos foi fundado, no Rio de janeiro, com ajuda de Edouard Huet, educador surdo francês também ligado ao INJS e que há alguns anos fundara na cidade o Collégio Nacional para Surdos-Mudos. Em 1957, o Instituto teve seu nome alterado para Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), como é chamado até os dias de hoje. Por essa mesma razão, é possível reconhecer a forte semelhança entre a Língua de Sinais Francesa (LSF) e a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), ainda que, ao longo dos quase dois séculos que nos separam da vinda de Huet para o Brasil, essas duas línguas tenham sofrido transformações e influências diversas.

O Instituto Nacional de Jovens Surdos de Paris, em francês Institut National de Jeunes Sourds, preserva seu lugar de patrimônio histórico dos surdos, mas não ficou parado no tempo. Seu desafio atual é adaptar-se às transformações da educação de surdos, com novas demandas e novas tecnologias. O INJS é aberto para visitas, mediante agendamento, e o acervo da sua biblioteca histórica está disponível para consulta.

Fonte: Arquivo pessoal.





sexta-feira, 7 de agosto de 2015

EM DUPLO RISCO: MULHER E DEFICIENTE

Há exatos 09 anos (07/08/2006) foi sancionada a Lei Maria da Penha. Embora as ações e discussões que derivaram dela não tenham acabado com a violência doméstica contra a mulher no país, elas contribuíram para encorajar a denúncia. Em 2014, a Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) recebeu, em média, mais de 1300 denúncias de violência contra a mulher por dia. Em relação ao ano anterior, houve um aumento de 50% nas denúncias de cárcere privado e de 20% nas denúncias de violência sexual (estupro, assédio e exploração sexual). As denúncias de violência física chegaram a 27.369, correspondendo a 51,68% do total. Nunca é demais lembrar que o número de denúncias está longe de corresponder à totalidade de ocorrências e que a violência física representa apenas um dos tipos de violência cometida contra a mulher.

Fonte: arquivo pessoal
Quando nos voltamos para o universo das mulheres com deficiência, a situação é ainda mais grave. Em Portugal, 50% das mulheres deficientes que participaram de uma pesquisa relataram ter sofrido violência de gênero. No Canadá, em pesquisa realizada em 1989, 40% das mulheres com deficiência que responderam aos questionários afirmaram ter sido vítimas de abuso e 12%, vítimas de estupro. Menos da metade delas registrou queixa. Embora outras pesquisas, tanto nacionais quanto internacionais, ratifiquem essa porcentagem, a necessidade de estudos mais aprofundados é evidente.

Além das formas de violência de gênero perpetradas contra as mulheres em geral, a mulher com deficiência está sujeita também às formas de violência cometidas contra os deficientes, tais como, a imposição de tratamentos médicos intrusivos e não consentidos, por vezes com consequências irreversíveis, ou, pelo contrário, a não garantia de tratamentos e cuidados necessários. A mulher deficiente fica colocada no entrecruzamento perverso de dois preconceitos milenares, encontrando-se numa posição de duplo risco.

Algumas hipóteses tentam explicar essa triste prevalência: as mulheres com deficiência, em geral, são menos escolarizadas; vivem uma situação de maior dependência econômica; têm uma circulação mais restrita nos meios sociais e, portanto, mais dificuldade em encontrar suporte; têm menos condição de acessar os serviços de apoio existentes e, em alguns casos, menos credibilidade diante das autoridades que deveriam protegê-las. Com isso, os agressores, quase sempre pessoas próximas, se encontram em uma posição de maior poder e têm mais certeza de permanecerem impunes por seus crimes. Essas hipóteses, no entanto, não explicam a violência, elas apenas descrevem a situação de maior vulnerabilidade em que se encontra a mulher deficiente. Entender porque as pessoas se aproveitam dessa condição pra praticar atos de violência é bem mais complexo.

A violência é um sintoma da desumanização do outro: aceito como ser humano aquele que reconheço como igual ou como ideal, porque vejo nele as características que admiro em mim ou que desejo ter. Todos os outros são menos humanos ou mesmo não humanos, são objetos, dos quais posso dispor de acordo com meus desejos, humores e medos. Nestes, apenas vejo as partes de mim que não aceito e por isso não os suporto. Parte da violência é fruto dessa objetificação: seja como ato de exercício perverso de poder daquele que se entende como ser humano verso aquele a quem considera objeto, seja como ato de reação daquele que se viu reiteradamente colocado neste lugar.

* Os links inseridos ao longo do texto levam para as fontes de onde foram extraídas as informações usadas.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

VOCABULÁRIO DA SURDEZ PARA INICIANTES – PARTE II

Trago mais alguns conceitos relacionados à linguagem e comunicação dos surdos e entre surdos e ouvintes (veja a parte I aqui). Lembro que são descrições introdutórias e parciais. Caso alguém queira indicação de material para aprofundamento, posso fornecer com prazer.

Língua oral (falada) complementada – esse é um método usado para facilitar a leitura orofacial (LOF) e, portanto, a compreensão da linguagem oral pelo surdo. De modo simplificado, a leitura orofacial, ou leitura labial, se baseia na correspondência entre configuração e movimentação dos lábios e da língua e os fonemas (sons) que compõem as palavras. No entanto, algumas diferenças são imperceptíveis visualmente, por exemplo, a distinção entre os sons de “t” e “d” ou de “f” e “v”, dificultando ou impedindo a compreensão. Na língua oral complementada, sinais específicos para cada fonema são realizados próximo ao rosto sempre que os sons de difícil distinção são pronunciados, de modo que essas dicas visuais se somam à leitura labial. Embora o uso dessa técnica possa trazer benefícios, ela exige uma grande capacidade de concentração do surdo e uma grande habilidade linguística de quem a realiza.

Português sinalizado – diferente da língua de sinais, que possui uma estrutura própria, o português sinalizado é a tradução literal do português oral para sinais, ou seja, mantendo a estrutura do idioma. O português sinalizado é usado principalmente no contexto educativo, como uma forma de transmissão de conteúdos, porém, para o surdo que constrói seu pensamento a partir da língua de sinais, ele pode gerar confusões importantes.

Datilologia – é a utilização do alfabeto manual para soletrar palavras. Na datilologia cada sinal corresponde a uma letra do alfabeto utilizado pelo idioma oral. Ela funciona como uma escrita sinalizada. Algumas pessoas pensam que a língua de sinais se resume à datilologia, mas não é o caso. Seu uso é comum quando se quer expressar uma palavra para a qual não existe um sinal na língua de sinais ou para comunicar um nome próprio. Sua compreensão depende do grau de domínio da escrita pelo surdo. Consta na literatura que o alfabeto manual foi criado por monges espanhóis que viviam em voto de silêncio. Com a datilologia eles podiam se comunicar, sem quebrar seus votos. Posteriormente, este alfabeto foi integrado à educação de surdos e surdo-cegos.

Escrita de Sinais ou Signwriting – sistema de notação da língua de sinais. Esse sistema foi criado pela americana Valerie Sutton, na década de 1970, para ser usado para a transcrição de qualquer língua de sinais e, desde então, vem sendo desenvolvido por diversos pesquisadores. Na escrita de sinais, um conjunto de símbolos visuais é usado para representar os elementos das línguas de sinais que são responsáveis por dar sentido ao que está sendo comunicado: a configuração das mãos, seu posicionamento em relação ao corpo, o movimento que realizam e a expressão facial. A possibilidade de um registro gráfico das línguas de sinais é entendida como uma forma de garantir uma memória permanente do patrimônio cultural da comunidade surda, além de permitir a comunicação à distância. Atualmente, com a maior facilidade do uso e compartilhamento de vídeos, essa necessidade foi parcialmente sanada.


Dúvidas? Sugestões? Críticas? Não hesitem em me dizer, elas ajudam a melhorar o blog.



sexta-feira, 17 de julho de 2015

“DESCULPE, SOU SURDO”

Há um tempo atrás, em um supermercado, me dirigi à um funcionário para tirar uma dúvida sobre um produto. Sem graça, ele sinalizou em LIBRAS: “Desculpe, sou surdo.” Felizmente, meu pouco conhecimento nessa língua me permitiu perguntar o que eu precisava e compreender sua resposta. Eu saí muito orgulhosa por ter tido meu primeiro diálogo em LIBRAS e ele me pareceu muito aliviado e feliz em ter podido me ajudar. Isso é o que muitos surdos relatam sentir quando encontram um ouvinte que usa língua de sinais. 

No entanto, aquela frase não me saiu da cabeça: “Desculpe, sou surdo.” É claro que o funcionário estava sendo gentil e quis mostrar que sentia muito por não poder me responder. Porém, será que essa frase não revela muito sobre a compreensão que, de modo geral, temos sobre a surdez e sobre os surdos? Quando nos desculpamos por algo isso significa, em tese, que reconhecemos que cometemos um erro. Mais do que isso, significa que reconhecemos nossa responsabilidade sobre esse erro e a obrigação de nos retratarmos com aqueles que sentimos que foram prejudicados por ele. Ora, não existe nenhum erro em ser surdo e muito menos a necessidade de se desculpar por isso. Nesse sentido, se desculpar por ser surdo seria como eu me desculpar por ser mulher, me desculpar por ter nascido no Brasil ou me desculpar por ter um metro setenta.

Por trás dessa frase está a compreensão da surdez como um desvio da norma, como uma condição que não é compatível com o que seria um ser humano ideal. Quase todos nós já nos sentimos em algum momento oprimidos por esse tal de ideal, que, por definição, é sempre inalcançável. Sobre esse ideal, cada sociedade, em cada contexto histórico particular, constrói o seu conceito de NORMAL. Ainda que seja extremamente variável e culturalmente construído, o conceito de normal é apresentado como se fosse algo natural, inevitável, como a única forma possível e desejável de existir. A imposição de atender a esse ideal é tão presente e forte que nos faz sentir culpados cada vez que nos percebemos desviando dele: “Desculpe, eu não tenho carro.” “Desculpe, eu não uso manequim 36.” “Desculpe, eu sou negro.” “Desculpe, eu não gosto de futebol.” “Desculpe, eu não quero ter filhos.” “Desculpe, eu sou homossexual.” “Desculpe, eu não bebo.”

Porém, quando desnaturalizamos o conceito de normal, ou seja, quando entendemos que ele se molda a partir de convenções sociais, entendemos também que somos capazes de intervir sobre ele, de mudá-lo, ou até, quem sabe, de decidir que ele já não é mais necessário. Então, o que eu gostaria de poder dizer àquele funcionário surdo do mercado é: “Desculpe, eu faço parte dessa sociedade e, por isso, me sinto responsável por ela ainda ser uma sociedade que faz muitas pessoas se sentirem na obrigação de pedir desculpa pelo simples fato de serem quem são.”

Foto de arquivo pessoal.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

SEREMOS TODOS SURDOS?

Não, não acho que um dia seremos todos surdos, porém, com o aumento da expectativa de vida e de outros fatores de risco, tais como exposição ao barulho e a substâncias ototóxicas, todos nós estamos mais sujeitos a ter uma perda auditiva progressiva. A perda auditiva relacionada ao envelhecimento é chamada presbiacusia.  Além de fatores ligados ao estilo de vida, como tabagismo, uso de medicações e consumo de álcool, os fatores genéticos também são muito importantes.

Diferente de uma perda súbita, ou de uma perda congênita, ou seja, quando a pessoa já nasce surda, a perda progressiva é mais dificilmente percebida. Sem se dar conta, a pessoa vai desenvolvendo alguns mecanismos compensatórios, como a leitura orofacial, por exemplo. Mesmo assim, é comum que a pessoa comece a ter dificuldades em acompanhar uma conversa entre várias pessoas ou em um ambiente com mais ruído e que as situações de comunicação se tornem muito fatigantes, pelo nível de concentração exigido. Isso pode resultar em um maior isolamento, com a recusa em participar de situações sociais e uma maior impaciência. Muitas vezes, a família ou as pessoas próximas entendem isso como um sentimento de depressão ou como “coisa da idade” e o diagnóstico demora pra ser feito ou nem chega a ser feito. Outras vezes, a pessoa esconde sua dificuldade em ouvir, tornando a adaptação de todos ainda mais difícil.

Nos casos de presbiacusia, o uso de aparelhos auditivos pode ajudar, no entanto, muitas vezes não se tem o cuidado necessário com a adaptação das próteses. Esse é um processo delicado e contínuo, que deve acompanhar as variações na perda e as demandas e estilo de vida de cada usuário. O descuido com a adaptação, por desinformação ou por dificuldade em dar continuidade ao acompanhamento, faz com que muita gente desista do uso dos aparelhos por não perceber um ganho concreto.

No entanto, tão ou mais importante do que o uso dos aparelhos é a atitude da pessoa com a perda e das pessoas próximas. Algumas coisas simples podem facilitar a comunicação, tais como: chamar atenção da pessoa, de preferência com um toque ou gesto, quando for se dirigir a ela; procurar falar de forma mais clara e lenta, olhando diretamente pra pessoa e sem gritar; certificar-se de que a pessoas entendeu; quando possível, utilizar meios visuais para reforçar mensagens importantes; privilegiar situações e locais com menos barulho pra facilitar a interação, e; principalmente, não desistir de se comunicar.

Embora exista uma grande diferença entre a presbiacusia e a surdez, todas essas orientações também são válidas quando estamos conversando com um surdo que faz leitura orofacial. Pensando bem, por que esperar que nós ou alguém próximo tenha uma perda auditiva pra desenvolvermos uma postura que facilite o contato entre surdos e ouvintes? Mais uma vez fica claro que, quando temos uma atitude inclusiva, somos todos nós que saímos ganhando. 

Foto de arquivo pessoal

domingo, 28 de junho de 2015

SINAIS PARA BEBÊS

Eu já tinha visto, há algum tempo, uma reportagem sobre uso de sinais com bebês e crianças e, recentemente, resolvi pesquisar um pouco sobre o assunto. É possível encontrar sites, vídeos e textos tratando desse tema. Os sinais para bebês não são destinados para crianças surdas, mas são apresentados como uma forma de melhorar a comunicação entre os pais e seu bebê ouvinte, até que esse aprenda a falar. O que é dito é que o bebê é capaz de realizar sinais simples antes mesmo de ser capaz de falar as primeiras palavras.

Muitos benefícios são listados na divulgação do uso de sinais com bebês, entre eles, melhora da comunicação, diminuindo os momentos de frustração e desconforto; favorecimento da criação de laços mais estreitos com os pais; aumento da sensação de segurança; melhora da coordenação; melhor rendimento na escola etc. É importante ressaltar, no entanto, que os estudos que encontrei apresentam resultados contraditórios. 

Eu penso que o uso de sinais com bebês e crianças pode trazer benefícios, desde que a família os introduza de forma natural e leve. Se os sinais se tornam uma obrigação e sua aprendizagem um fator gerador de ansiedade, a comunicação pode se tornar artificial. A aprendizagem de uma língua pela criança, qualquer que seja, depende de uma experiência afetiva e significativa com esta. Saliento que essa opinião não se sustenta na observação direta do uso de sinais com bebês, mas na experiência e estudo sobre a aquisição da linguagem, de modo geral. Tampouco se refere ao uso de sinais com bebês surdos.

Duas coisas, no entanto, me chamaram atenção na pesquisa que fiz. Poucos artigos e vídeos que li se referem ao uso da língua de sinais pelos surdos. Para mim, uma vantagem que deveria ser listada em letras maiúsculas seria justamente o fato de familiarizar a criança com as primeiras noções da língua de sinais, favorecendo que ela venha a se desenvolver como bilíngue. É claro que o uso de sinais, nesse caso, não promove fluência na língua, mas apresenta pra criança e pras famílias a existência de uma outra forma de comunicação, a gestual, ou viso-espacial.   

Acho que isso tem como efeito a segunda coisa que gostaria de comentar: os vídeos e textos, mesmo no Brasil, apresentam sinais que não são os sinais da Língua Brasileira de Sinais! Certo que a literatura sobre o tema é essencialmente americana e introduz alguns sinais básicos da rotina de bebê em Língua Americana de Sinais (ASL), mas seria extremamente simples encontrar os sinais correspondentes em LIBRAS. Por que não usar os sinais da nossa língua de sinais?

Foto de Juliana Bebé



sexta-feira, 19 de junho de 2015

VOCABULÁRIO SOBRE A SURDEZ PARA INICIANTES – PARTE I

Neste texto apresento alguns conceitos relacionados à linguagem e comunicação dos surdos e com os surdos. Tratam-se, no entanto, de descrições breves e iniciais. Para os interessados, há muito material disponível sobre cada um desses temas. Caso deseje saber mais, ficarei contente em indicar outras leituras. É só pedir!

Surdez Pós-lingual – é a surdez adquirida, de forma progressiva ou súbita, após a aquisição da linguagem. O surdo pós-lingual pode se expressar oralmente, embora o tempo de surdez e a falta de retorno auditivo possam afetar a produção de alguns fonemas, tornando a compreensão de sua fala mais complicada.

Surdez Pré-lingual – é a surdez congênita, isto é, a pessoa nasce surda, ou adquirida muito cedo, antes do desenvolvimento da linguagem oral. Ambas podem ocorrer por fatores genéticos, por sequela de infecções, por intoxicação por uso de determinados medicamentos, por síndromes diversas e por vários outros fatores.

Língua de Sinais, LS – é uma língua que se constrói a partir de sinais feitos principalmente com as mãos. O significado dos sinais varia de acordo com a configuração das mãos, suas posições em relação ao corpo e os movimentos que elas realizam, aliados à expressão facial e corporal de quem sinaliza. A língua de sinais não é uma tradução da linguagem oral. Ela tem uma estrutura própria. Uma língua de sinais pode ser usada pra descrever situações, narrar acontecimentos, expressar pensamentos abstratos e sentimentos complexos, ou seja, é uma língua como qualquer outra.

Língua Brasileira de Sinais, LIBRAS – como o nome já diz, é língua de sinais utilizada no Brasil. Cada país tem a sua língua de sinais, por exemplo, na França ela é chamada de Langue de Signe Française, LSF, e nos Estados Unidos, de American Sign Language, ASL. Desde 2002, a LIBRAS é a segunda língua oficial do Brasil. Assim como o português, a LIBRAS também apresenta variações regionais e mesmo entre diferentes grupos de idade. Ela é uma língua viva, que incorpora novas palavras e conceitos para dar conta das necessidades e desejos de comunicação entre seus usuários.

Posts relacionados:

Leitura Orofacial, LOF – mais conhecida como leitura labial, é empregada como forma de compreender o que é dito pelo outro a partir do movimento e posicionamento dos lábios, língua e bochechas. Às vezes, sem perceber, todos nós fazemos um pouco de leitura labial para complementar as informações que não são percebidas pela audição. Isso quer dizer que ela pode ser aprendida de forma espontânea, mas seu uso como meio principal de compreensão requer muito treino e uma grande capacidade de concentração. A LOF ajuda o surdo a se comunicar com ouvintes quando um ou ambos não são fluentes em língua de sinais. Ela pode ser facilitada ou dificultada por diversos fatores como a velocidade da fala, a posição do falante, a iluminação do ambiente ou a presença de objetos que atrapalhem a visão, como microfones, por exemplo. 



Dúvidas? Sugestões? Críticas? Não hesitem em me dizer, elas ajudam a melhorar o blog. 






sexta-feira, 5 de junho de 2015

LEGENDAS EM PORTUGUÊS EM FILMES BRASILEIROS

A convivência com as diferenças nos faz repensar as coisas mais banais do cotidiano. Aquilo que nos parece óbvio ou simples, pra outra pessoa pode se apresentar como uma dificuldade intransponível. A decisão de nos tornarmos uma sociedade inclusiva passa pela necessidade de nos depararmos com cada uma dessas pequenas coisas e nos empenharmos todos na busca por uma solução.

Bom, aqui vai uma delas. Outro dia um grupo de amigas estava às voltas com a programação de cinema, com dificuldades em encontrar um filme pra assistir, porque o único que as interessava, e que ainda não tinham visto, era um filme brasileiro. E qual o problema? Vocês podem ter se perguntado. A questão é que algumas delas são surdas e os filmes brasileiros não são legendados no cinema. Para assisti-los, elas têm que esperar que os filmes saiam em DVD, que contam, às vezes, com a legenda descritiva, aquela em que, além dos diálogos, são descritos os outros sons do filme. Até então, eu nunca tinha pensado sobre isso.

Uma outra coisa da qual poucas pessoas se dão conta é que é possível tornar o cinema um espaço mais acessível também para cegos. Nesse caso, o recurso é chamado de audiodescrição, na qual um narrador descreve as cenas, ações ou expressões importantes para a compreensão do enredo.

Para que esses recursos sejam viabilizados, duas ações são essenciais. Primeiro, é preciso que os produtores do filme disponibilizem a legenda descritiva, ou legenda oculta, a interpretação em LIBRAS e a audiodescrição. Pois bem, pelo menos para os filmes nacionais financiados com recursos públicos, isso já é lei desde dezembro de 2014, com a publicação, pela ANCINE, da Instrução Normativa nº 116.

A segunda ação é a disponibilização desses recursos pelas salas de cinema. De certa forma, isso também já é garantido pelo texto da lei da acessibilidade (Lei nº 10.098/2000). Porém, sem o conhecimento, a regulamentação e a fiscalização, sua aplicação é bastante ineficaz. Antes, empresários e espectadores se queixavam do possível desconforto que a inserção desses recursos poderia provocar no público em geral. No entanto, os avanços da tecnologia já oferecem soluções bastante interessantes para isso, como óculos especiais e dispositivos portáteis para exibição das legendas de forma individual, por exemplo.

Esse é um momento especial pra pensarmos sobre isso, porque, até o dia 08 de julho, todos podemos contribuir com a consulta pública que está sendo realizada pela ANCINE sobre o tema. Você pode entender melhor consultando aqui a Notícia Regulatória  e a Análise de Impacto. Para opinar na consulta é preciso se cadastrar no Sistema de Consultas Públicas da ANCINE. Penso que essa é uma oportunidade de fazermos parte de um passo importante rumo à inclusão cultural de todos. Eu quero participar disso. E você?

     



quarta-feira, 27 de maio de 2015

EM TERRA DE CEGO...

“Em terra de cego, quem tem um olho é rei.” Esse é um famoso provérbio popular, que significa que, mesmo quando se tem pouco, em um contexto onde todos os demais têm ainda menos, você está em vantagem. É claro que o provérbio se baseia em uma metáfora e não deve ser tomado ao pé da letra, mas será que essa metáfora se sustentaria se pudéssemos realmente viver a experiência de ser o único a enxergar em um mundo de cegos?

H. G. Wells, no seu conto de 1904 The country of the blinds, traduzido em português como Em Terra de Cego, retrata exatamente esta situação. O conto se passa em um lugar imaginário que teria sido isolado do resto do mundo após a erupção de um vulcão e no qual, por uma condição genética predominante, toda a população acabou por ser composta unicamente por cegos. Após várias gerações de isolamento, um homem chega por acaso a esse lugar e então as situações mais inesperadas acontecem. Paro por aqui pra não entregar o final da história, cuja leitura recomendo e que pode ser facilmente encontrada na internet.

Para mim, esse conto mostra o quanto é difícil pensar o mundo a partir de outros parâmetros, o quanto assumimos que o nosso jeito de pensar, de ver, de escutar é o melhor, se não o único jeito possível. Nem todos podemos contar com a capacidade de imaginação de um escritor como H. G. Wells. Para a maioria de nós, pensar o mundo a partir de um outro ponto de vista é um exercício extremamente difícil.

Porém, algumas vezes nos vemos em situações que nos ajudam a compreender um pouco do que é viver em um mundo que não foi pensado pra nós. Pense no quanto podemos nos sentir dependentes quando precisamos imobilizar um braço ou uma perna. Pense no quanto é difícil resolver problemas simples quando estamos em um país onde não conhecemos o idioma. Pense no quanto podemos nos sentir incapazes quando nos deparamos com uma nova tecnologia e que todos, menos nós, parecem usar com facilidade. É claro que isso não é o mesmo que viver toda a vida tendo que lidar com dificuldades semelhantes a essas, mas esses breves momentos podem nos sensibilizar a todos para a existência de diferentes jeitos de ser.

Mais do que isso, o que essas experiências e o conto de H. G. Wells deveriam nos ajudar a compreender é que a deficiência, a limitação, a incapacidade são determinadas pelo contexto. É o meio que é incapacidade, não a surdez, a cegueira, a paralisia. É a forma de ensinar inadequada que limita a aprendizagem do surdo. É a falta de rampas que restringe o deslocamento do cadeirante. É o pensamento intolerante que exclui o diferente e não a sua diferença. Quando compreendemos isso, ampliamos nosso jeito de ver e pensar o mundo e passamos não mais a desejar ser aquele que tem um olho em terra de cego, mas a desejar e a nos empenhar na construção de uma terra que seja de todos. Em uma terra assim, um rei seria ainda necessário?





Herbert George Wells, em 1943.
Fonte: Wikipédia

quarta-feira, 13 de maio de 2015

MUSEU ADAPTADO

Em muitos museus atualmente é possível fazer uma visita guiada, com auxílio de um equipamento chamado Áudio-Guia. Seu funcionamento é simples e prático. A cada obra ou trecho da exposição é atribuído um número que deve ser selecionado no Áudio-Guia, acionando uma breve explicação que pode ser ouvida aproximando o aparelho do ouvido. Normalmente, os Áudio-Guias estão disponíveis em vários idiomas. Esse sistema enriquece muito a visita, pois acrescenta informações sobre a biografia do autor e sobre as obras, ajudando a compreender o contexto histórico e artístico em que foram produzidas. Ao mesmo tempo, permite que cada visitante aprecie o espaço no seu ritmo.
Em março desse ano visitei o Museu Nacional Marc Chagall, em Nice, no sul da França (http://www.musee-chagall.fr). Foi lá que conheci um dispositivo, parecido com este, mas feito para visitantes surdos. O funcionamento é semelhante, porém, a cada número selecionado, o visitante acessa uma explicação gravada em língua de sinais, mostrada em uma pequena tela. A ideia me pareceu bastante simples e eficaz e talvez esse Vídeo-Guia seja mais comum do que eu pense e eu apenas não os tinha notado antes.
Dois detalhes, porém, chamaram minha atenção. A funcionária do museu foi muito gentil em nos mostrar o equipamento e tirar nossas dúvidas. No entanto, não foi possível ver o Vídeo-Guia em funcionamento porque todos os aparelhos estavam descarregados. A funcionária, meio sem graça, nos explicou que haviam outros carregados em outro lugar, caso alguém precisasse realmente usá-los. De qualquer modo, isso me fez pensar sobre a frequência de uso desses Vídeo-Guias. Será que eles são tão requisitados que as baterias todas se acabaram, ou se descarregaram porque ninguém usa e ficaram esquecidos em alguma gaveta? Será que os surdos sabem da existência desses aparelhos
Além disso, fiquei curiosa em saber se, assim como no caso dos Áudio-Guias, os Vídeo-Guias também estavam disponíveis em línguas de sinais de diferentes países. Isso seria realmente incrível! Ao que a funcionária, agora um pouco espantada com minha pergunta, respondeu que eles estavam em língua de sinais e que a língua de sinais é universal; uma compreensão equivocada, mas que é ainda muito comum. Ela expressa a ideia de que a língua de sinais seria como uma mímica ou um conjunto de gestos e não uma língua viva e mutante, com léxico e semântica ricos, e que se desenvolve, como todas as outras línguas, em cada contexto cultural particular, com seus regionalismos, suas gírias e sujeita à influência de seu tempo.
De qualquer modo, ponto pro Museu Nacional Marc Chagall. Adoraria saber se existem no Brasil museus que oferecem esse ou outros serviços que favorecem a acessibilidade. Alguém aí saberia me dizer? 


Foto de arquivo pessoal

segunda-feira, 4 de maio de 2015

A FAMÍLIA BÉLIER

Em dezembro de 2014 o filme francês La Famille Bélier foi lançado em meio a uma grande expectativa. Estrelado por três famosos atores franceses, Karin Viard, como Gigi, François Damiens, como Rodolphe, e Eric Elmosnino, como Senhor Thomasson, mas protagonizado pela estreante Louane Emera, como Paula, o filme lotou os cinemas na França nas primeiras semanas de exibição. Em outros países, seu sucesso de público também foi expressivo.
O filme, ao mesmo tempo cômico e emocionante, tem um enredo banal: uma adolescente que descobre um grande talento, mas que não recebe o apoio imediato de seus pais para perseguir seu novo sonho. Sua particularidade, o fato dos pais e do irmão mais novo de Paula serem surdos. Ele se propõe, portanto, a apresentar uma história comum, porém em um contexto pouco conhecido: a experiência de ser um CODA (Children of Deaf Adults), o nome que se dá pra filhos de pais surdos, e, nesse caso, um CODA ouvinte.
Embora seja uma população relativamente pequena em termos absolutos, os filhos ouvintes de pais surdos representam cerca de 95% dos filhos de surdos. Curiosamente esse é o mesmo percentual de pais ouvintes de filhos surdos. Isso significa que, em 95% das famílias em que há um surdo, há uma grande tendência à que as relações de linguagem se estabeleçam de forma bilíngue. Ou seja, essa é uma situação de grande importância e que desperta questões extremamente complexas.
Mesmo reconhecendo sua importância por tratar desse tema, A Família Bélier recebeu muitas críticas. Começo pela minha própria: na versão original, em francês, apenas as partes em que os personagens se comunicam em língua francesa de sinais (LSF) foram legendadas, não demonstrando uma preocupação em tornar o filme acessível para a comunidade surda francesa, seja legendando todas as falas, seja incluindo a interpretação em LSF dos diálogos em francês falado, o que seria o ideal.
Outra forte crítica foi o fato de os pais de Paula serem interpretados por atores ouvintes. Apenas seu irmão, Quentin, foi interpretado pelo ator surdo Luca Gelberg. Segundo os usuários de LSF, isso resultou em que muitos erros grosseiros fossem cometidos na utilização dessa língua. Atores surdos poderiam ter sido convidados para interpretar os papéis, o que, além de evitar esse problema, seria um reconhecimento de sua competência e talento. 
Uma última crítica se dirige ao fato do talento de Paula ser justamente cantar. Para muitos, isso reforça o caráter clichê do filme e se sustenta sobre uma visão ouvintista de que o fato de não poder ouvir música ocasionaria um grande sofrimento para o surdo. Particularmente, acho que isso faz com que o filme perca em sutileza, mas, inegavelmente, ganhe em apelo ao público geral.
Acho que é preciso avaliar A Família Bélier pelo que ele é: um filme feito por e para ouvintes. Ele não acrescenta muito às pessoas que já se interessam e convivem com os Surdos e seus filhos. Porém, tem os elementos necessários para chamar atenção para a questão, ainda que de forma superficial, para a maioria da população, que nunca pensou sobre o assunto. Penso que isso tem um valor em si. A questão que gostaria de discutir é: isso seria suficiente para compensar as falhas atribuídas ao filme?

Trailer:

quarta-feira, 29 de abril de 2015

TODOS SOMOS PRECONCEITUOSOS

Por mais que não seja afeita às generalizações, admitir a onipresença do preconceito é necessário para não permitir que ele guie nossas ações e se traduza em discriminação.

Todos somos preconceituosos porque essa é a forma mais econômica de pensar. Ao nos relacionarmos com o mundo e com os outros o fazemos a partir de nossas experiências. Assim, diante de alguém ou de alguma situação, infinitas associações, conscientes ou não, interferem na forma como avaliamos o contexto e nos posicionamos diante dele. Em nome da praticidade e da urgência, essas associações operam de forma generalizada, ou seja, não levam em conta, em um primeiro momento, as características específicas da situação, mas tratam de enquadrá-la em uma categoria pré-estabelecida, forjada lentamente por nossos preconceitos.

Todos somos preconceituosos porque nascemos, crescemos e vivemos em sociedade e não estamos imunes aos mecanismos de classificação, valorização e reforçamento social que a constitui. Diariamente, as práticas sociais e culturais reeditam antigos preconceitos, enquanto se esforçam pra manter as coisas como elas são. Nas notícias tendenciosas, nas propagandas oportunistas, nas piadas aparentemente inocentes, nas imagens estereotipadas, nas expressões cristalizadas, de forma mais ou menos oculta, antigas ideias e ideais são transmitidos e naturalizados. Tudo isso se atualiza no preconceito que orienta o trato cotidiano entre as pessoas.

Todos somos preconceituosos porque o contato com o outro nos confronta com nosso próprio reflexo e com complexos processos de identificações. O estranho nos fascina, porque nos assusta terrivelmente. Encontrar rapidamente um rótulo com o qual definir o outro, nos dá um conforto, porque sustenta a fronteira entre o eu e o não-eu, porque nos protege da fatigante  e, por vezes, excessivamente desorganizante tarefa de questionar a nós mesmos e às nossas ações. O preconceito, portanto, funciona como uma defesa, que empregamos porque o conforto da repetição, do mais ou menos, prevalece sobre a intuição das dificuldades que podemos enfrentar na construção do ótimo.    


Admitir o preconceito e conhecer seus intrincados mecanismos é o que pode fazer minguar sua expressão na forma de discriminação. Que a primeira impressão que nos venha seja moldada por nossos preconceitos, isso me parece, por ora, inevitável. Porém, é preciso cavar um espaço entre esta impressão e o gesto, pra aí instaurar a vigilância constante contra a discriminação. Isso requer de nós a abertura à novidade, ao desconhecido, ao inusitado. Isso nos demanda encarar o reflexo não tão belo que nos mostra o espelho das nossas escolhas. Quem topa?