“Em terra de cego, quem tem um
olho é rei.” Esse é um famoso provérbio popular, que significa que, mesmo
quando se tem pouco, em um contexto onde todos os demais têm ainda menos, você
está em vantagem. É claro que o provérbio se baseia em uma metáfora e não deve
ser tomado ao pé da letra, mas será que essa metáfora se sustentaria se
pudéssemos realmente viver a experiência de ser o único a enxergar em um mundo
de cegos?
H. G. Wells, no seu conto de 1904
The country of the blinds, traduzido em
português como Em Terra de Cego, retrata exatamente esta situação. O conto se
passa em um lugar imaginário que teria sido isolado do resto do mundo após a
erupção de um vulcão e no qual, por uma condição genética predominante, toda a
população acabou por ser composta unicamente por cegos. Após várias gerações de
isolamento, um homem chega por acaso a esse lugar e então as situações mais inesperadas
acontecem. Paro por aqui pra não entregar o final da história, cuja leitura
recomendo e que pode ser facilmente encontrada na internet.
Para mim, esse conto mostra o
quanto é difícil pensar o mundo a partir de outros parâmetros, o quanto
assumimos que o nosso jeito de pensar, de ver, de escutar é o melhor, se não o
único jeito possível. Nem todos podemos contar com a capacidade de imaginação
de um escritor como H. G. Wells. Para a maioria de nós, pensar o mundo a partir
de um outro ponto de vista é um exercício extremamente difícil.
Porém, algumas vezes nos vemos em
situações que nos ajudam a compreender um pouco do que é viver em um mundo que
não foi pensado pra nós. Pense no quanto podemos nos sentir dependentes quando
precisamos imobilizar um braço ou uma perna. Pense no quanto é difícil resolver
problemas simples quando estamos em um país onde não conhecemos o idioma. Pense
no quanto podemos nos sentir incapazes quando nos deparamos com uma nova tecnologia
e que todos, menos nós, parecem usar com facilidade. É claro que isso não é o
mesmo que viver toda a vida tendo que lidar com dificuldades semelhantes a
essas, mas esses breves momentos podem nos sensibilizar a todos para a
existência de diferentes jeitos de ser.
Mais do que isso, o que essas experiências e o
conto de H. G. Wells deveriam nos ajudar a compreender é que a deficiência, a
limitação, a incapacidade são determinadas pelo contexto. É o meio que é
incapacidade, não a surdez, a cegueira, a paralisia. É a forma de ensinar
inadequada que limita a aprendizagem do surdo. É a falta de rampas que
restringe o deslocamento do cadeirante. É o pensamento intolerante que exclui o
diferente e não a sua diferença. Quando compreendemos isso, ampliamos nosso
jeito de ver e pensar o mundo e passamos não mais a desejar ser aquele que tem
um olho em terra de cego, mas a desejar e a nos empenhar na construção de uma
terra que seja de todos. Em uma terra assim, um rei seria ainda necessário?
Herbert George Wells, em 1943.
Fonte: Wikipédia