* Pesquisa realizada como aluna do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal da Bahia, com financiamento da CAPES, pelo Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior, e da Fapesb, pelo Programa de Bolsa de Doutorado.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

“DESCULPE, SOU SURDO”

Há um tempo atrás, em um supermercado, me dirigi à um funcionário para tirar uma dúvida sobre um produto. Sem graça, ele sinalizou em LIBRAS: “Desculpe, sou surdo.” Felizmente, meu pouco conhecimento nessa língua me permitiu perguntar o que eu precisava e compreender sua resposta. Eu saí muito orgulhosa por ter tido meu primeiro diálogo em LIBRAS e ele me pareceu muito aliviado e feliz em ter podido me ajudar. Isso é o que muitos surdos relatam sentir quando encontram um ouvinte que usa língua de sinais. 

No entanto, aquela frase não me saiu da cabeça: “Desculpe, sou surdo.” É claro que o funcionário estava sendo gentil e quis mostrar que sentia muito por não poder me responder. Porém, será que essa frase não revela muito sobre a compreensão que, de modo geral, temos sobre a surdez e sobre os surdos? Quando nos desculpamos por algo isso significa, em tese, que reconhecemos que cometemos um erro. Mais do que isso, significa que reconhecemos nossa responsabilidade sobre esse erro e a obrigação de nos retratarmos com aqueles que sentimos que foram prejudicados por ele. Ora, não existe nenhum erro em ser surdo e muito menos a necessidade de se desculpar por isso. Nesse sentido, se desculpar por ser surdo seria como eu me desculpar por ser mulher, me desculpar por ter nascido no Brasil ou me desculpar por ter um metro setenta.

Por trás dessa frase está a compreensão da surdez como um desvio da norma, como uma condição que não é compatível com o que seria um ser humano ideal. Quase todos nós já nos sentimos em algum momento oprimidos por esse tal de ideal, que, por definição, é sempre inalcançável. Sobre esse ideal, cada sociedade, em cada contexto histórico particular, constrói o seu conceito de NORMAL. Ainda que seja extremamente variável e culturalmente construído, o conceito de normal é apresentado como se fosse algo natural, inevitável, como a única forma possível e desejável de existir. A imposição de atender a esse ideal é tão presente e forte que nos faz sentir culpados cada vez que nos percebemos desviando dele: “Desculpe, eu não tenho carro.” “Desculpe, eu não uso manequim 36.” “Desculpe, eu sou negro.” “Desculpe, eu não gosto de futebol.” “Desculpe, eu não quero ter filhos.” “Desculpe, eu sou homossexual.” “Desculpe, eu não bebo.”

Porém, quando desnaturalizamos o conceito de normal, ou seja, quando entendemos que ele se molda a partir de convenções sociais, entendemos também que somos capazes de intervir sobre ele, de mudá-lo, ou até, quem sabe, de decidir que ele já não é mais necessário. Então, o que eu gostaria de poder dizer àquele funcionário surdo do mercado é: “Desculpe, eu faço parte dessa sociedade e, por isso, me sinto responsável por ela ainda ser uma sociedade que faz muitas pessoas se sentirem na obrigação de pedir desculpa pelo simples fato de serem quem são.”

Foto de arquivo pessoal.

2 comentários:

  1. Nossa, que texto incrível!
    Me remeti ao meu primeiro diálogo com um surdo, porque até então eu só conhecia a libras na teoria quando paguei essa disciplina no meu curso de graduação, que infelizmente passamos pela libras não a conhecemos verdadeiramente como deveríamos. Mas esse pequeno tempo que pude ver e ter contato com essa língua me apaixonei e me inquietei, no sentido de querer entender porque as pessoas tratam os surdos como incapazes se os mesmos não são, a única diferença é a maneira pela qual nos comunicamos. Eu particularmente gostaria muito que o ensino da libras fizesse parte da educação desde a infância para que crescessemos entendendo e respeitando a diferença, e não naturalizando o que é normal ou anormal!
    Parabéns pelo texto, me encantei pelo blog!
    Me empoguei ao escrever!
    Bjs!
    PS: a minha pesquisa para a realização do meu TCC será sobre a educação do surdo!

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    1. Oi Aline, a experiência de ter um primeiro diálogo em uma nova língua é muito emocionante, né? Essa visão que associa surdez e incapacidade é uma história antiga, mas aos poucos vamos tentando superá-la. Desejo a você sorte no seu trabalho e compartilhe conosco suas reflexões. Obrigada por participar. Um abraço!

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